A Religiosidade Russa em Tarkovsky
Tarkovsky, em Andrei Rublev, faz uma não-biografia do pintor russo medieval famoso por pintar os afrescos da catedral de Moscou
Há uma herança neorrealista-rosseliniana que ainda pulsa em Andrei Rublev (Andrei Rublev; 1966), o segundo filme dirigido pelo russo Andrei Tarkovsky; em seu trabalho inicial, A infância de Ivã (1962), esta herança era mais palpável, mas ela subsiste na densidade estética de Andrei Rublev e começaria a ruir (embora, se olharmos bem os escombros, sobre algo) a partir de Solaris (1972) e O espelho (1974). Tarkovsky, em Andrei Rublev, faz uma não-biografia do pintor russo medieval famoso por pintar os afrescos da catedral de Moscou; naquele meio inóspito, rural, arcaico, Rublev é o pintor camponês que interessa à visão neorrealista de Tarkovsky. No entanto, as estranhas formas de que se vale o realizador para expor sua personagem (que em muitos episódios do filme nem chega a aparecer) têm uma provocação estética que aproxima o filme do realismo religioso e metafísico que vem da arte russa desde o escritor Dostoievsky, inclusive com o sentido do humor grotesco soviético dentro do trágico.
Não se pode deixar de pensar, ao ver Andrei Rublev, em outra não-biografia de artista russo no cinema. Trata-se de A cor da romã (1969), onde o diretor Sergei Paradjanov utiliza a figura do poeta armênio do século XVIII Sayat Nova para criar seu delírio minucioso, contido, criativo de imagens; se Tarkovsky usa muito a fala e os ditos, Paradjanov faz uma narrativa silenciosa, onde o suntuoso-plástico é que importa. De qualquer maneira, são duas obras-primas em que o cinema funde as artes: cinema se converte em poesia e pintura em ambos os filmes, pois o poeta de um e o pintor de outro são poeta-pintor-cineasta nas mãos de Tarkovsky e Paradjanov.
A crueza estética de Andrei Rublev atinge seu paroxismo nas cenas brutais e brutas em que os tártaros destroem um povoado russo. Há uma luz crua e perturbadora em praticamente todas as imagens do filme. A trabalhada fotografia em preto-e-branco de Vadim Yussov ajuda neste trabalho de linguagem cinematográfica. Os últimos oito minutos de filme são a cores: a câmara de Tarkovsky percorre as telas de Rublev, semidestruídas algumas quando se deu a invasão dos tártaros; movimentos laterais da câmara, fusões, quadros (poucos) fixos, tudo montado com a habilidade de Tarkovsky para criar profundos efeitos cinematográficos.
Andrei Rublev, entre tantas coisas, é o retrato de um artista feito por outro artista que não pode deixar de ver-se (um espelho) no artista retratado.
(Eron Duarte Fagundes – eron@dvdmagazine.com.br)
Sobre o Colunista:
Eron Duarte Fagundes
Eron Duarte Fagundes é natural de Caxias do Sul, no Rio Grande do Sul, onde nasceu em 1955; mora em Porto Alegre; curte muito cinema e literatura, entre outras artes; escreveu o livro Uma vida nos cinemas, publicado pela editora Movimento em 1999, e desde a década de 80 tem seus textos publicados em diversos jornais e outras publicações de cinema em Porto Alegre. E-mail: eron@dvdmagazine.com.br