Os Lugares Comuns Revisitados

Diário de inverno (Winter journal; 2012), do americano Paul Auster, se converte numa narrativa literária americana de primeira

19/06/2017 17:11 Por Eron Duarte Fagundes
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Há o lugar comum: uma vida americana no século XX. Há o lugar-comum: “você entrou no inverno da vida”, assim se conclui o romance autobiográfico, ou autobiografia romanceada, o inverno como metáfora (gasta) da última estação de uma vida, ou seria o gelo mesmo do hemisfério norte? Então, entre o fato diretamente vivido e uma linguagem tão direta que o mais das vezes se abeira das expressões-clichê, Diário de inverno (Winter journal; 2012), do americano Paul Auster, se converte numa narrativa literária americana de primeira, digna sucessora de outros ilustres, como o objetivo-descansado Ernest Hemmingway (que parece escrever às vezes deitado numa rede) e o melancólico-neurótico F. Scott Fitzgerald (um texto sob neblina que pouco a pouco se aclara, ou o contrário, um texto claro que se adensa com a neblina): nada de circunlóquios, um conjunto narrativo que vai aos poucos conquistando o leitor.

Auster é um dos muitos escritores do século XX ligados à produção cinematográfica. Foi roteirista do realizador Wayne Wang (Sem fôlego, 1994, e Cortina de fumaça, 1995) e tentou a direção de filme com algo arrastado e sem o senso de narrar em imagens, O mistério de Lulu (1998). É claro que isto deixa marcas em sua literatura: escrever um pouco como quem escreve um roteiro de cinema, anotações de cenas, fragmentos curtos entremeados com seu gosto proustiano por aqui e ali dissertações mais longas e sofisticadas e conectivadas. Em Diário de inverno ele chega a referir mais diretamente sua vida no cinema, relatando o encontro com o ator francês Jean-Louis Trintignant num festival de filmes e aproveitando para aludir a quatro obras com Trintignant de que gostava, O conformista, de Bertolucci, Minha noite com ela, de Rohmer, De repente, num domingo, de Truffaut, A fraternidade é vermelha, de Kieslowski. Evidencia-se também que a estrutura de Diário de inverno se aproxima duma estrutura cinematográfica: o romance como uma montagem em que seus ossos se expõem.

Ao contrário do memorialista tradicional, o narrador criado por Auster não se vale do “eu”, nem mesmo aquele “eu” quase impessoal do francês Marcel Proust, mas vai usar o tempo todo um “você”, como se estivesse falando consigo mesmo, diante do espelho. O primeiro dado deste “você”, que simula dirigir-se ao leitor, que é uma terceira pessoa incrustada na narrativa, como se fosse a clássica narrativa onisciente mas não é, dizia, pois, antes do anacoluto, que este “você” de Diário de inverno serve para aproximar o leitor, jogá-lo duma vez para dentro da história que se quer contar.

“Você acha que nunca vai acontecer com você, que não pode acontecer com você, que você é a única pessoa no mundo com quem nenhuma dessa coisas jamais há de acontecer, e então, uma por uma, todas elas começam a acontecer com você, do mesmo modo como acontecem com todas as outras pessoas.” Diário de inverno vai mostrar a trajetória deste homem comum que se transformou num ficcionista extraordinário: suas relações com o pai, especialmente suas relações com a ambígua mãe, seus amores, sua ascensão do nada ao estrelato num tempo em que até a literatura é espetáculo, suas agonias particulares. Fato essencial: a morte da mãe. Reação: “Ao ouvir essa notícia, você sente que todas as suas entranhas se esvaziaram.” E as percepções pós-morte: “Por outro lado, muito embora você fosse filho dela, você não sabe praticamente nada. São muitas as lacunas, muitos os silêncios e evasões, muitos os fios perdidos ao longo dos anos para que você possa costurar uma história coerente. Inútil falar sobre ela, portanto. O que houver para ser dito tem que ser extraído do interior, de suas entranhas, da acumulação de lembranças e percepções que você continua a levar dentro do seu corpo e que o deixaram, por motivos que jamais virão a ser conhecidos por completo, ofegante no chão da sala de jantar, certo de que estava prestes a morrer.”

Admirador da literatura europeia, especialmente das sutilezas e sofisticações francesas (ao evocar uma garota de programa com quem se relacionou em seus tempos de Paris, Auster alude ao gosto dela por poesia e uma recitação que ela fizera, no quarto, dum poema de Charles Baudelaire, o que permite ao narrador revisitar sua afeição de um tempo parisiense e uma paixão literária, a meretriz e Baudelaire, ambos prazeres conjugados num determinado momento), em instante algum o escritor de Diário de inverno deixa de ser profundamente americano em sua descontração verbal e o despojamento da intensidade metafórica de sua prosa. Incógnito, escondido atrás do indireto e malicioso “você”, o narrador encaminha o fim de seu relato singelo e todavia doloroso: “Seus pés descalços no assoalho frio quando você se levanta da cama e anda até a janela. Você tem sessenta e quatro anos. Lá fora o ar está cinzento, quase branco, e não há sol à vista. Você se pergunta: quantas manhãs ainda restam?”

No fundo, o leitor pode perguntar ao narrador: que importa? O que importa é o tempo vivido, capturado com escorreito brilho pela narração de Diário de inverno. Um dia na cama da francesa Sandra ouvindo o verso: “Mère de souvenirs, maîtresse des maîtresses”. Como em Proust, a literatura de Auster é preenchida pelas lembranças; diferentemente de Proust a pequena balada (cheia de lugares comuns e lugares-comuns) vai substituir a sinfonia mais grandiloquente da estrutura proustiana.

 

(Eron Duarte Fagundes – eron@dvdmagazine.com.br)

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Sobre o Colunista:

Eron Duarte Fagundes

Eron Duarte Fagundes

Eron Duarte Fagundes é natural de Caxias do Sul, no Rio Grande do Sul, onde nasceu em 1955; mora em Porto Alegre; curte muito cinema e literatura, entre outras artes; escreveu o livro ?Uma vida nos cinemas?, publicado pela editora Movimento em 1999, e desde a década de 80 tem seus textos publicados em diversos jornais e outras publicações de cinema em Porto Alegre. E-mail: eron@dvdmagazine.com.br

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