As Delicadezas da Memoria

O Banco de Tres Lugares (1951) eh uma narrativa ?nica dentro da literatura brasileira

01/09/2022 12:33 Por Eron Duarte Fagundes
As Delicadezas da Memoria

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A impressão, desde as primeiras frases, é que O banco de três lugares (1951) é uma narrativa única dentro da literatura brasileira. O romance de Maria de Lourdes Teixeira cria uma personagem de mulher que, valendo-se do relato em primeira pessoa, evoca, com uma delicadeza extremamente sutil e profunda, uma espécie de infância longínqua e, no interior desta infância, um obscuro episódio familiar. Com mestria, a romancista evita dar o corpo inteiro deste episódio; este comportamento subterrâneo das personagens dentro do episódio parece assomar em cada gesto de cotidiano descrito no romance, mas nunca aparece senão sob a forma de centelhas.

Maria de Lourdes foi casada com o escritor José Geraldo Vieira, famoso nos anos 40 e 50, mas hoje esquecido. Dela o esquecimento é ainda mais cruel: difícil encontrar, mesmo em críticos contemporâneos da autora, algum ensaio, estudo ou artigo em torno da obra de Maria de Lourdes. Pode parecer espantoso diante da força romanesca de um livro como O banco de três lugares. Sabemos que certos autores que fogem às facilidades dos estereótipos estéticos nacionais são hoje jogados para os fundos da biblioteca do país; este ostracismo imposto pela história literária é visível em escritores da estirpe de José Geraldo Vieira, Cyro dos Anjos, Lúcio Cardoso, Cornélio Penna, muito diferentes entre si mas identificáveis como autores que impõem um universo ficcional de exigências à parte. No entanto, quando se lê um romance como O banco de três lugares, a intuição é de que há algo mais fundo. Mesmo uma obra como O amanuense Belmiro (1937), de Cyro dos Anjos, que por suas características de linguagem tão despojada quanto elaborada poderia induzir a uma aproximação com a forma de Maria de Lourdes, não chega a trazer os aspectos mais estranhamente secretos do estilo que deparamos em O banco de três lugares.

“Hoje as recordações me ocorrem de tal modo que bem quisera escrevê-lo na forma ingênua da menina que os sentiu. Mas, a sensibilidade de então se vale da experiência de agora e na verdade esta evocação não somente narra, como também interpreta e comenta.”

Milena, a personagem posta em cena diretamente na palavra narrativa de O banco de três lugares, é, no correr dos fatos narrados, uma menina em família, os pais, o motorista, a empregada, as colegas e as irmãs do internato. Mas tudo é contado por esta menina muitos anos depois, já adulta. A romancista busca equilibrar o coeficiente da perspectiva de infância e uma revisão mais elaborada da memória. Uma vida de menina que, sem se adulterar, possa ser contada por uma mulher.

“Por que não eram assim nas outras noites? Por que é que só os notava nas intermináveis insônias dos sábados? Seria de propósito? Trariam de novo, lá do depósito longínquo da memória, blocos de recordações para que eu os rolasse pelo  chão de domingo?”

Estas memórias de menina compostas por Maria de Lourdes se opõem frontalmente às memórias (mais físicas que interiores) do menino de engenho de José Lins do Rego. O debruçar-se de Maria de Lourdes sobre os gestos cotidianos é tão radical e traz uma delicadeza para lá de particular. A construção duma sensibilidade literária própria enraíza o desconforto de alguns leitores diante do texto da escritora.

O episódio de mistério, entre o metafísico e o psicológico, próximo talvez de algumas coisas de Henry James, atravessa pelo meio dos relatos do cotidiano da meninice de Milena. Esta tensão entre o trivial e algo que se oculta em regiões obscuras traz uma forma narrativa nova dentro de O banco de três lugares.

“Minha mãe parada, imóvel, se reflete no espelho. E eu sinto um medo horrível, tendo pavor de correr para ela, de me ajoelhar, de abraçá-la, porque aquele rosto está corrompido pelo sofrimento, devastado pelos delírios, seus olhos não me veem tal como sou. Há névoa, há loucura naqueles olhos.”

A sobrevivência ou o esquecimento de um escritor é um conjunto de circunstâncias; dificilmente haverá um motivo só, embora possa ter uma razão central. No caso de Maria de Lourdes Teixeira podem apontar-se alguns. Casada com José Geraldo Vieira, pode este casamento ter gerado o preconceito dos críticos: escreve e publica às expensas da fama do marido. Historicamente, as mulheres que escreveram em nosso passado literário estão mais sujeitas ao limbo que os homens, naturalmente em função do machismo, que não se restringe a um conceito individual mas se refere à estrutura da sociedade patriarcal que tem vindo ao longo dos séculos. Quando se cita numa literatura uma ou outra mulher (por que Lygia Fagundes Telles sobreviveu e não Maria de Lourdes?), há o sofisma de que citar uma exceção (uma mulher é lembrada) desmancha a regra machista da sociedade. Mas eu insto num ponto: acima do casamento com José Geraldo ou do machismo estrutural, o esquecimento radical dos textos de Maria de Lourdes Teixeira se alicerça centralmente numa questão estética: um modelo de literatura caracterizado por delicadezas de linguagem e sentimentos cujas portas só podem ser encontradas aqui, nesta ficção.

Seja lá como for, ou como se possa dar rumo às lucubrações deste comentarista, seria bom que algum editor ousado pudesse trazer à luz a obra desta grande escritora paulista, para além dos sebos em que o leitor interessado tem de mergulhar. O sonho de um autêntico cultor de literatura é ecumênico: dispor de todos os livros escritos para degustar e avaliar à sua sensibilidade.

 

(Eron Duarte Fagundes – eron@dvdmagazine.com.br

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Sobre o Colunista:

Eron Duarte Fagundes

Eron Duarte Fagundes

Eron Duarte Fagundes é natural de Caxias do Sul, no Rio Grande do Sul, onde nasceu em 1955; mora em Porto Alegre; curte muito cinema e literatura, entre outras artes; escreveu o livro ?Uma vida nos cinemas?, publicado pela editora Movimento em 1999, e desde a década de 80 tem seus textos publicados em diversos jornais e outras publicações de cinema em Porto Alegre. E-mail: eron@dvdmagazine.com.br

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