"O TRABALHADOR NA VIDA" OU "O CINEMA É UMA QUESTÃO DE VOZ"
Coutinho faz em Peões mais um de seus belos filmes de conversa
O projeto cinematográfico do realizador Eduardo Coutinho segue intacto em Peões (2004), considerado como o outro lado de Entreatos (2004), de João Moreira Salles, seu filme-gêmeo. Enquanto este acompanha os últimos trinta dias da campanha que levaram Lula à Presidência do Brasil, humanizando a figura do político geralmente transformado em caricatura pela mídia, a realização de Coutinho mostra os depoimentos de “peões” que não deram tão certo quanto Lula, trabalhadores (metalúrgicos principalmente) que na época atual do desemprego como praga permanecem à margem de desfrutar as riquezas da sociedade; no filme de Salles vemos com ênfase o narcisismo de político em que se converteu o ex-metalúrgico, no de Coutinho o último entrevistado, o operário desempregado Geraldo, fala longamente sobre as durezas de sua vida, chegando a perguntar a Coutinho se ele já foi peão (recebendo um seco: “Não.”); as últimas imagens são o debruçar-se doloroso sobre o rosto amargo e desconsolado de Geraldo, o peão que não quer que seu filho seja peão, contrariamente ao que ocorria com um entrevistado anterior, que fazia questão que seu filho, um rapaz que aparecia igualmente em cena, fosse peão, questionando a indagação de Coutinho: “É desmérito? É desmérito?” exclama a personagem com uma fúria no olhar e na face.
Coutinho faz em Peões mais um de seus belos filmes de conversa, em que ele busca a inserção de seu trabalho numa realidade cinematográfica. Tudo é muito sutil e sua habilidade para fazer com que suas personagens narrem é sempre espantosa; é tão simples e ao mesmo tempo tão complexo, na teia de oposições em que as diversas vozes narrativas se articulam. Se para Salles cinema é uma questão de montagem, para Coutinho a montagem se estrutura nas vozes que aparecem durante as filmagens.
Mas a figura de Lula, conquanto distante, não está ausente de Peões. Ele não é um dos entrevistados da fita: transformou-se muito para que pudesse submeter-se ao espírito singelo da narrativa; certamente por isso Coutinho desfez o projeto de filmar a campanha de Lula concomitantemente com Salles, filmar Lula no estágio atual da vida do ex-metalúrgico trairia o projeto cinematográfico atual de Coutinho, que é observar com sua câmara os seres humanos mais frágeis. Há uma única cena de Lula na campanha presidencial, uma passeata em São Bernardo do Campo: é o ponto de ligação do filme de Coutinho com o de Salles, dizem que foi ali o único momento em que as equipes das duas produções se encontraram ao longo de suas filmagens. Que aparece de Lula em Peões? O que aparece de Lula na película de Coutinho é cinema, citações a certos clássicos do cinema operário brasileiro, como Greve (1979), de João Batista de Andrade, ABC da greve (1979-1990), de Leon Hirszman, e especialmente Linha de montagem (1982), de Renato Tapajós, ocorrendo que os inflamados discursos em sindicatos pronunciados por Lula ainda hoje arrepiam, como arrepiavam quando se via Linha de montagem em guetos universitários no início dos anos 80. Assim, Coutinho mostra o Lula antigo como um produto do imaginário cinematográfico da época; Peões pode ser lido como uma retomada melancólica da luta operária, mostrando que ela parece não ter futuro em tempos sem emprego.
Sobre o Colunista:
Eron Duarte Fagundes
Eron Duarte Fagundes é natural de Caxias do Sul, no Rio Grande do Sul, onde nasceu em 1955; mora em Porto Alegre; curte muito cinema e literatura, entre outras artes; escreveu o livro Uma vida nos cinemas, publicado pela editora Movimento em 1999, e desde a década de 80 tem seus textos publicados em diversos jornais e outras publicações de cinema em Porto Alegre. E-mail: eron@dvdmagazine.com.br