O Barroquismo Como Agressão
O pensador (político, literário) José Hildebrando Dacanal, fazendo uma montagem de textos que tem escrito de 1990 a 2016, lançou em 2017, pela BesouroBox, o livro A nova classe e a história do PT
O pensador (político, literário) José Hildebrando Dacanal, fazendo uma montagem de textos que tem escrito de 1990 a 2016, lançou em 2017, pela BesouroBox, o livro A nova classe e a história do PT. O que orienta estas meditações de Dacanal elaboradas ao longo de três décadas é historiar o fenômeno político do aparecimento, ascensão e queda do Partido dos Trabalhadores na vida brasileira. O oportunismo histórico e comercial do lançamento e da leitura da publicação está aí, às claras: o Mensalão, a destituição da presidente Dilma no meio do mandato, as condenações judiciais de vários elementos do Partido e do próprio líder máximo, finalmente a prisão deste líder, Lula, e nas eleições a vitória da extrema-direita como sintoma da repulsa contra o petismo. Penso que Dacanal não deva ser confundido integralmente com um porta-voz das murmurações antipetistas que venceram as eleições de 2018: as aparências enganam. Um cripto? Em momento algum Dacanal chega perto dos elementos das últimas eleições presidenciais, o livro foi publicado antes, o artigo mais recente é de 2016. Dacanal é um indivíduo de vasta cultura, exigências de linguagem, e como poucos ele sabe entrelaçar seu tumultuado patrimônio mental para produzir, em seu livro, o mais apaixonante libelo antipetista que se pôde ler. Dacanal é um espírito barroco, ele próprio uma hipérbole intelectual, seja lá como for: suas meditações políticas são uma aventura literária que não se pode deixar de desfrutar —independentemente de o leitor navegar ou não em suas águas de ideias.
Em anotações de 1990 ele assim retrata o Partido dos Trabalhadores: “um conjunto espantoso de corporativistas ensandecidos, adolescentes desorientados, arrivistas lépidos, totalitários enrustidos, messiânicos desarvorados, camponeses desesperados, lúmpen-intelectuais arrogantes, sindicalistas mais ou menos ignorantes, ingênuos bem intencionados e demagogos ilustrados”. É uma catadupa desgovernada mas cheia de um sentido do delírio brasileiro que não podemos deixar de considerar. Se há no meio das ponderações de Dacanal muito das exposições dos preconceitos do autor (um intelectual, um culto, alguém que conhece muito bem a língua e sabe usar tudo isto contra alguns pouco inspirados que o exprobram), e estes preconceitos que se materializam no texto remetem aos preconceitos da própria sociedade brasileira (claro que sem o refinamento do escritor), isto é parte do processo de mimetização visionária do próprio livro, uma pós-narrativa que vai além da própria junção de textos outrora escritos. Sobre a vitória do PT, considerado um pouco um partido de gente vulgar e tosca (a figura de Olívio Dutra é o parâmetro-alvo de Dacanal), lemos: “como foi que tais e tão patéticas figuras adentraram os solenes umbrais do Palácio Piratini, joia de arquitetura neoclássica da periferia europeia, reino sagrado e supremo símbolo do antigo poder oligárquico-senhorial sul-rio-grandense?” (Ao longo dos anos de glória do PT no país, muita gente que não tem onde cair morta em matéria de linguagem e cultura fez esta mesma indagação de Dacanal, um homem culto, um homem da linguagem). Todavia, é de se perguntar: o que espanta mais, a ingenuidade desta perplexidade (eleitoral) dum cérebro como o de Dacanal ou a ingenuidade (estética) do leitor que se submete hipnotizado a estas observações estranhas em função dos nervos linguísticos que trazem ali a paixão de ler?
No fundo, Dacanal é um ente literário para além do vulgar embate petismo-antipetismo que tem grassado nas redes sociais e muitas vezes na imprensa mesmo. Defendeu o projeto governamental medíocre de Antonio Brito, por um só motivo: porque Brito teria feito o processo de desestatização do Estado, retirando um pouco de cena um dos segmentos que teriam canabalizado o PT, as corporações de funcionários públicos diversos. Revela sua admiração por um cronista ambicioso mas sem grandes recursos, como Paulo Sant’Ana, porque enxerga nele um pouco daquilo que Dacanal ama, “aqueles cujo verbo jorrava em catadupas orgiásticas.” Dacanal diz assim sobre Sant’Ana: “E como todos os autodidatas brilhantes que vêm de baixo, ele tem o fascínio pelas palavras raras e pelas construções sintáticas sofisticadas, não importando mesmo, às vezes, o que elas significavam...”. Não parece aí que Dacanal está falando de si mesmo? Na verdade, com alguma cegueira, Dacanal inventa em Sant’Ana raridades e sofisticações que não existem. Mas nada disto —avaliações equivocadas, fúria política desnorteada—retira das orações demolidoras de Dacanal esta função de texto-ímpeto original e agudo no panorama atual das letras de fundo político hoje em dia.
(Alguns dias depois de baixar sobre a escrivaninha a última página de A nova classe e a história do PT, dou com outro texto de Dacanal, Memórias devastadoras, publicado no Caderno de Sábado do Correio do Povo de oito de dezembro de 2018. O alvo das meditações de Dacanal neste artigo para jornal é uma leitura tardia dum livro de outro escritor gaúcho, Sérgio Faraco: Lágrimas na chuva, 2002, apresenta uma experiência crítica do autor na União Soviética estalinista. Memórias devastadoras é um dos grandes textos do Caderno de Sábado ao longo da temporada passada. E parece um apêndice deste A nova classe. Dacanal começa explicando porque não leu o livro de Faraco em seu tempo e depois aos poucos vai descortinando seu assunto. Usando o disfarce dum ensaio sobre literatura, quer dizer, a análise de um livro, Dacanal aproveita para nova estocada na esquerda. Não à maneira dos trogloditas da direita: mas com um natural cinismo intelectual, montando uma curiosa dramaturgia de ideias. Apesar de conter alguns erros grosseiros para alguém com os dispositivos de informação de Dacanal —ele põe Faraco, que nasceu em 1940, na mesma geração de Rubem Fonseca e Lygia Fagundes Telles, autores brasileiros nascidos nos anos 20 do século passado, e alude ao romance Capitães da areia, 1937, como um documento sobre a trajetória da esquerda no Brasil, quando a narrativa de Jorge Amado é fundamentalmente um documentário entre lírico e ingênuo do universo dos adolescentes delinquentes na Bahia dos anos 30—, Memórias devastadoras sobrevive a suas falhas graças a este espírito ou tique de escritor inventivo que Dacanal não se peja de soltar na página. Ainda que as ideias ali tremam entre a agressividade e a consistência a duras penas.)
(Eron Duarte Fagundes- eron@dvdmagazine.com.br)
Sobre o Colunista:
Eron Duarte Fagundes
Eron Duarte Fagundes é natural de Caxias do Sul, no Rio Grande do Sul, onde nasceu em 1955; mora em Porto Alegre; curte muito cinema e literatura, entre outras artes; escreveu o livro ?Uma vida nos cinemas?, publicado pela editora Movimento em 1999, e desde a década de 80 tem seus textos publicados em diversos jornais e outras publicações de cinema em Porto Alegre. E-mail: eron@dvdmagazine.com.br