Passeio Ateu Pelas Demencias da Religiao
Antes de tudo, a mineira Petra Costa tem o senso cinematografico em grau maximo
Antes de tudo, a mineira Petra Costa tem o senso cinematográfico em grau máximo. É isto que distingue seus filmes dos bordados fílmicos da subjetividade do eu-cinema. Com sua obra, Petra navega nestes limites duma narrativa íntima e pessoal que parece falar de si mesma, para dentro de si mesma, mas se refere mesmo à natureza das coisas. Apocalipse nos trópicos (2024) é seu novo documentário em que a questão política é atravessada por sua voz e visão particulares (sua voz, não sua presença física visível, aparece narrativamente no filme, assim como já aparecia em Elena, 2012, em que ela evoca sua irmã mais velha morta há tantos anos, e Democracia em vertigem, 2019, seu debruçar-se sobre o escorregão democrático a partir da destituição da presidente Dilma Rousssef). O foco agora é o aparecimento, paulatino, no Congresso brasileiro, desta entidade nova para governar o país, um Deus sobrenatural, com as cores da vertente evangélica da religião.
No início do filme a narradora (a voz de Petra) revela seu espanto e seu desconforto quando a primeira vez deu com esta realidade religiosa (ou metarreligiosa) e com a figura anômala de Jair Bolsonaro valendo-se disto tudo. Petra não se peja de exacerbar nas imagens em que documenta os delírios religiosos na política nacional. Ela é tão incomodada quanto seu espectador com os arroubos esquisitos que depara; mas o olhar cinematográfico não pode fugir a esta realidade.
Em determinado momento, Lula, entrevistado pela voz entreouvida de Petra, tenta algumas explicações para o fenômeno. Sobre o socialismo: a tese de Lula é que o erro dos socialistas foi ter ignorado a religião, pois não se pode (para ganhar uma eleição? para governar?) ignorar os valores do povo. Será que é por isso que ele professa a fé em Deus? Seria um ateu travestido? Lula, ainda explicando a prevalência dos evangélicos sobre os demais para conquistar as pessoas, vai por um caminho que ele observou em seus tempos de sindicalista: o sujeito vai ao sindicato para melhorar de vida, os líderes lhe dão a explicação de que é preciso uma revolução; depois o cara vai à igreja católica, e lhe dizem que é assim mesmo, este mundo é de sofrimento, precisamos sofrer para ganhar o reino dos céus; então, o indivíduo desembarca nos evangélicos e lhe dão a solução, ele está com o diabo, expulsando o diabo, está tudo resolvido, é mais simples, mais direto, na cabeça das pessoas ali está a solução. Curioso Lula! No fundo, Apocalipse nos trópicos é um olhar perplexo para todas as realidades que circundam esta questão central, a religião exacerbando na política: a truculência da direita, as concessões da esquerda, a lentidão das reformas sociais brasileiras. A maioria ignora um dado essencial de Apocalipse nos trópicos, é mais um belo autorretrato do íntimo estético de Petra Costa.
(Eron Duarte Fagundes – eron@dvdmagazine.com.br)
Sobre o Colunista:
Eron Duarte Fagundes
Eron Duarte Fagundes é natural de Caxias do Sul, no Rio Grande do Sul, onde nasceu em 1955; mora em Porto Alegre; curte muito cinema e literatura, entre outras artes; escreveu o livro Uma vida nos cinemas, publicado pela editora Movimento em 1999, e desde a década de 80 tem seus textos publicados em diversos jornais e outras publicações de cinema em Porto Alegre. E-mail: eron@dvdmagazine.com.br
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