O Documentarista da Palavra

O texto que segue, tratando da novela A doença, uma experiência (1996), de Jean-Claude Bernardet, foi publicado originalmente na revista Continente Sul Sur, editada pelo Instituto Estadual do Livro do governo do Estado do Rio Grande do Sul, em 1997

25/01/2019 23:42 Por Eron Duarte Fagundes
O Documentarista da Palavra

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O texto que segue, tratando da novela A doença, uma experiência (1996), de Jean-Claude Bernardet, foi publicado originalmente na revista Continente Sul Sur, editada pelo Instituto Estadual do Livro do governo do Estado do Rio Grande do Sul, em 1997.

 

O Documentarista da Palavra

 

É impossível ler a experiência ficcional de Jean-Claude Bernardet sem nos voltarmos para sua teoria de cinema, que é o que de melhor este belga paulistano tem oferecido à cultura brasileira. Na obra-prima Cineastas e imagens do povo (1985), ele analisa a evolução da imagem no conceito de documentário, no cinema brasileiro.

A meu ver, é esta teoria de uma recriação documental, pela exacerbação do cotidiano, que está no centro da nova perspectiva de escritura que é A doença, uma experiência (1996), uma breve e potente novela cuja carga de realidade é um achado. O protagonista-narrador de Bernardet é um diretor de cinema, homossexual e aidético; a certa altura, à mesa de montagem, insatisfeito com detalhes de sua realização cinematográfica, quer remontar o filme para “desorganizar sequências que lhe dão um aspecto sociológico que me desagrada”. Este pequeno dizer, profundo e revelador da opção estética de Bernardet, fornece a explicação para este texto estranho, a um tempo objetivo e desarticulador de realidades, que é A doença; Bernardet age como um documentarista da palavra, mas estabelece rigores de composição para rever, escrevendo, o conceito de documentário à maneira idêntica àquela de que se valeu o crítico de cinema para olhar alguns filmes brasileiros.

Se de um lado é inelutável que a estrutura do livro de Barnardet se alicerça em suas teorias de estética narrativa desenvolvidas como ensaísta de cinema, por outro impressiona a maneira como o grande pensador se despe de seu aparato intelectual para escrever como quem filma um documentário, expressão usada por José Carlos Avellar, em O chão da palavra: cinema e literatura no Brasil (1994), para definir o estilo de Graciliano Ramos. O amálgama do fenômeno Bernardet aumenta quando observamos que, para além da estruturação de vocábulos e veios narrativos, há um clima de estranheza literária que vem da aproximação do texto ao caráter elíptico e anotação de um roteiro cinematográfico. O que primeiro me vem à memória para confrontar é outro estranho e desabusado relato de outro grande nome do cinema contemporâneo, o alemão Werner Herzog e seu livro Caminhando no gelo (1978), igualmente um hino de fé na junção Arte e Dor, anotações da caminhada que Herzog fez meditando na grande historiadora do cinema alemão Lotte H. Eisner, que na época estava gravemente doente.

Por que Bernardet (um crítico, um analista) faz exalar tanto sangue, tanta pulsação em sua novela? Lembro que o grande Paulo Emílio Salles Gomes, autor dos mais definitivos comentários de filmes, perpetrou uma novela, Três mulheres de três pppês (1977), que se revelou um sub-Henry James, onde (em Paulo e não no genial Henry) o refinamento está a serviço do formalismo vazio e sem vida. A seiva, o impulso vital de Bernardet promana de sua própria visão teórica, despojada das veleidades estéticas, enquanto a teoria de Paulo Emílio só poderia aplicar-se aos filmes que ele viu e não à literatura ficcional que ele pretendia fazer.

É impossível ler a experiência ficcional de Jean-Claude Bernardet sem meditar neste fenômeno —epistemológico, por que não?— da metamorfose duma teoria em ser vivo duma ficção.

 

NOTA de 2018: O livro O chão da palavra: cinema e literatura no Brasil, de José Carlos Avellar, citado em meu texto, é o opúsculo de 1994 escrito por Avellar para acompanhar a Feira do Livro de Frankfurt, naquele ano em que o Brasil era o país homenageado. Em 2007 Avellar ampliou seu texto e suas reflexões publicando um novo livro com o mesmo título e boa parte de frases e ideias extraídas daquele opúsculo. Claro: em 1997, quando escrevi sobre a novela de Bernardet, eu só poderia ter lido o opúsculo de 1994; para 2007 ainda faltavam dez anos...

 

(Eron Duarte Fagundes – eron@dvdmagazine.com.br)

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Sobre o Colunista:

Eron Duarte Fagundes

Eron Duarte Fagundes

Eron Duarte Fagundes é natural de Caxias do Sul, no Rio Grande do Sul, onde nasceu em 1955; mora em Porto Alegre; curte muito cinema e literatura, entre outras artes; escreveu o livro ?Uma vida nos cinemas?, publicado pela editora Movimento em 1999, e desde a década de 80 tem seus textos publicados em diversos jornais e outras publicações de cinema em Porto Alegre. E-mail: eron@dvdmagazine.com.br

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