Uma das Verdades do Cinema
Eu, um negro (Moi, un noir; 1958), filme básico da filmografia do documentarista francês Jean Rouch, alerta o espectador para uma das verdades do cinema
Exibido em Porto Alegre há cerca de dez anos na “Mostra Jean Rouch, 90 anos”, Eu, um negro (Moi, un noir; 1958), filme básico da filmografia do documentarista francês Jean Rouch, alerta o espectador para uma das verdades do cinema: verdadeiro é aquilo que é encenado com autenticidade diante das câmaras; não há verdade cinematográfica senão aquela que é encenada (não necessariamente por atores, pode ser por amadores que vivem a si mesmos, pela câmara ou pela montagem ou pela fotografia como fontes visuais de reavaliação do real). Eu, um negro é, como Jaguar (1967), um dos filmes africanos de Rouch e adota a simplicidade fílmica como modo de aproximação àqueles seres ingênuos, primitivos mas dolorosamente reais; esta simplicidade é documental, remete à objetividade primeira do cinema, mas se propõe em sua estrutura narrativa como uma visão de algumas personagens negras que interpretam arquétipos cinematográficos (extraídos, por exemplo, de filmes de detetives) como se estivessem vivendo a si próprios, homens desempregados, famílias na maior miséria numa África sub-desenvolvida encravada no fim dos anos 50 do século XX.
O princípio de Eu, um negro, revelado pela voz do narrador Rouch desde as imagens iniciais, é que as pessoas repitam diante das câmaras seus gestos cotidianos, mesmo que queiram interpretar personagens fictícias. Não é este também o princípio de A árvore dos tamancos (1978), do italiano Ermano Olmi, onde camponeses recapturam dramaticamente seus ancestrais como se estivessem refazendo cenas de sua própria vida atual? O ritmo dos negros de Eu, um negro é o ritmo da vida dos negros na África; é a realidade que determina a forma cinematográfica. Rouch, como seu discípulo mais atual, o brasileiro Eduardo Coutinho, despreza os fricotes mistificadores da produção artística, o eu egocêntrico do artista; é do contato simples que Rouch extrai seu gênio cinematográfico: como Coutinho. Diz-se que o cinema de Coutinho nasce de Crônica de um verão (1961), codirigido por Rouch e pelo sociólogo Edgar Morin, onde a interferência intelectual deste é forte; mas no outro cinema de Rouch, mais singelo, menos afeito a elaborações mentais, está a transparência de que se serviria Coutinho depois.
Afirma-se que Rouch é o pai do cinema-verdade. Eu diria que é o pai do cinema-sinceridade e apresenta em seus filmes, sem totalitarismos formais, uma das possíveis verdades cinematográficas. Talvez tenha feito sempre filmes muito semelhantes entre si, um denso, tenso, perturbador, contraditoriamente dionisíaco (vejam aquela negra ridente que despe seus belos e agudos seios para a câmara-personagem ou para a personagem que se adona da câmara, um negro como ela, eu, um negro, o narrador, o sujeito que se debruça eroticamente sobre seu objeto), olhar afro-francês sobre o mundo; talvez Crônica de um verão, estudo localizado da classe média gaulesa dos anos 60, pela utilização de Morin como personagem-catalisador, fuja um pouco (não inteiramente) ao projeto cinematográfico de Rouch.
A fotografia direta, desbotada mesmo de Eu, um negro não é envelhecimento, podemos ver assim: é mais uma das tantas recusas do filme e de seu realizador em glamurizar os eventos reais ainda que encenados. Uma cena-chave para ver como Rouch considera o documentário, um tipo de cinema que fixa o cotidiano mas também os sonhos deste cotidiano, o imaginário criado sobre este cotidiano, pois a vida é—como o próprio cinema— ao mesmo tempo documentário e ficção, eu dizia nesta frase meio anacoluto que a cena-chave para entender o processo documental de Rouch é aquela em que o negro fantasia de boxeador, chegando a ser campeão de boxe; a sequência não é encenada como se fosse um sonho, mas como se realmente estivesse acontecendo, para demonstrar que nosso imaginário é parte do real. Isto me revela o quanto o cinema de Rouch (antes mesmo do apontado Crônica de um verão, batutado igualmente pela gerência do filósofo Morin), se parece (não digo propriamente influência, pois sinto diferenças muito grandes entre os dois) com o do brasileiro Eduardo Coutinho: não é esta cena do boxe, em sua ideologia pura diante do sonho do homem comum, reproduzida em sua essência na tão aludida cena em que um senhor mimetiza o cantor americano Frank Sinatra no disco de My way em Edifício Máster(2002)? Boxe e Sinatra não são ambos signos da cultura majoritária, a americana, ativando o imaginário de pessoas comuns do Terceiro Mundo?
(Eron Duarte Fagundes – eron@dvdmagazine.com.br)
Sobre o Colunista:
Eron Duarte Fagundes
Eron Duarte Fagundes é natural de Caxias do Sul, no Rio Grande do Sul, onde nasceu em 1955; mora em Porto Alegre; curte muito cinema e literatura, entre outras artes; escreveu o livro Uma vida nos cinemas, publicado pela editora Movimento em 1999, e desde a década de 80 tem seus textos publicados em diversos jornais e outras publicações de cinema em Porto Alegre. E-mail: eron@dvdmagazine.com.br