O Que Desaparece e Reaparece

Coisas perturbadoras se sucedem na obra de Haruki Murakami

14/07/2019 21:15 Por Eron Duarte Fagundes
O Que Desaparece e Reaparece

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Primeiro, o gato do narrador desaparece. Muito depois, o gato vai reaparecer: como quem não quer nada, como quem só tirou umas férias em tempos difíceis. Entre o desaparecimento e a volta do gato, outras coisas perturbadoras se sucedem: a principal destas coisas, o sumiço da esposa do narrador, assim do nada. É este o centro do romance Crônica do pássaro de corda (Nejimakidori Kuronikuru; 1994), do japonês Haruki Murakami.

No caminho para descobrir os motivos do desaparecimento (ou fuga) de sua mulher Kumiko, a personagem que narra, Toru Okada, uma espécie de escritor desempregado, entediado, numa grande metrópole de hoje, topa várias criaturas, a maior parte mulheres, que o enredam pouco a pouco em certas perplexidades sob uma aparência de o estar ajudando a resolver sua questão conjugal que também é uma questão existencial (ou uma questão é metáfora da outra). A primeira destas mulheres, Malta Kanô, propõe um encontro com Okada, aparentemente para falar sobre o gato que desapareceu. “Essa minha resposta sem sentido pairou por um tempo no ar sobre a mesa, como a ilha voadora de As viagens de Gulliver.” Seria o autor irlandês Jonathan Swift uma das fontes da escrita, bem nipônica, de Murakami? Aquela estranheza ingênua e primitiva de narrar, talvez. Um Kafka menos secreto: signos invisíveis que aos poucos saem da neblina. No entrevero ou na teia da conversa, Malta Kanô, que é um codinome da personagem inspirado em andanças na ilha de Malta, uma revelação-chave: “—Minha irmã é cinco anos mais nova do que eu —informou Malta Kanô. —Ela foi maculada pelo sr. Noboru Wataya, violada brutalmente.” Noboru Wataya é o ser masculino central na trajetória do protagonista-narrador: ele é o irmão estranhamente disfarçado e perverso de Kumiko, a esposa desaparecida. Esta personagem, Noboru, vai ter mesmo uma ação narrativa decisiva (tanto quanto é possível investigar nesta narrativa que parece esquivar-se a todo o momento, num jogo com o leitor) a partir do desaparecimento de Kumiko. Noboru é o elo impossível do narrador com os motivos do sumiço de Kumiko. Por ele se chega a uma carta em que Kumiko revela o superficial motivo de sua saída de casa: estar com outro homem. Este motivo vai e volta no romance sem instalar-se bem. Antes, sobre o desaparecimento do gato, Malta diz: “—Não posso afirmar se o gato continua vivo ou não. Mas com certeza nesse momento ele não está perto da sua casa. Então não vai aparecer, por mais que o senhor procure pelas redondezas.” Na frase anterior, Malta afirmou que o que houvera, e explicava a fuga do bicho, fora uma mudança de fluxo, e o fluxo se obstruíra. Poderia aplicar-se este conceito à inesperada partida sem aviso e sem volta de Kumiko?

Além dos relatos do homem que narra, há outros narrares de interferência que saltam diretamente para as páginas. Um destes narradores é May Kasahara, mulher que manda cartas inóspitas para Okada. Uma destas cartas parece falar sobre o próprio processo em que se constrói o longo livro; “Acho que o tempo não é uma coisa que corre em sequência. É algo que uma hora vai para cá, outra hora vai para lá, de maneira aleatória.” Kasahara alude também, agudamente, ao sentimento de desespero da experiência solitária. “Acordo no meio da noite, sozinha, a uns quinhentos quilômetros de todas as pessoas e de todos os lugares. Está tudo escuro e, mesmo olhando para todos os lados, tenho vontade de gritar alto, muito alto.” Mas ela igualmente acena com uma esperança: “Espero que Kumiko volte logo para você.”

No fim do livro, Okada tem um diálogo com sua Kumiko fantasmagórica, que ele não vê, pois estão num lugar escuro, somente as vozes se tocam. É algo à maneira daquela conversa com o diabo em Os irmãos Karamazov (1880), do russo Fiódor M. Dostoievski: símbolo de alguma outra coisa ainda indecifrável. Mas na cena saltam dúvidas do narrador se estava falando com Kumiko: estavam no escuro, não a via. Há referências a uma música de Rossini no início: Murakami tem percepção musical, como se sabe de outra obra sua. Há alusões à violência do Japão pelo depoimento (solto, sem função narrativa precisa) de um tenente, o relato do tenente assume uma voz de primeira pessoa em certos momentos. O romance de Haruki Murakami se abre, em parte, como um processo de insônia, em que se vai dormir, diz-se no final, muito tempo depois. Num lugar longínquo, distante daquele universo de tumultos em que tudo aconteceu, o gato desapareceu, depois a esposa, pessoas invadiram o ser da personagem.

 

(Eron Duarte Fagundes – eron@dvdmagazine.com.br)

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Sobre o Colunista:

Eron Duarte Fagundes

Eron Duarte Fagundes

Eron Duarte Fagundes é natural de Caxias do Sul, no Rio Grande do Sul, onde nasceu em 1955; mora em Porto Alegre; curte muito cinema e literatura, entre outras artes; escreveu o livro ?Uma vida nos cinemas?, publicado pela editora Movimento em 1999, e desde a década de 80 tem seus textos publicados em diversos jornais e outras publicações de cinema em Porto Alegre. E-mail: eron@dvdmagazine.com.br

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