No Cora??o do Fascismo

Passados tantos anos de seu lancamento nos cinemas brasileiros, Um dia muito especial revela a eternidade de certos filmes que, para alem dos modismos de sua epoca

26/09/2019 17:38 Por Eron Duarte Fagundes
No Cora??o do Fascismo

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Ela fez oitenta e cinco anos no último dia 20 de setembro. É uma das maiores intérpretes que o cinema pôde produzir. Tem o jeito de estrela que os produtores querem para ganhar dinheiro. Mas é acima de tudo uma atriz de grandes recursos. A italiana Sophia Loren percorreu as telas cinematográficas, ao longo das décadas, fascinando, em várias latitudes, os amantes do cinema. Ela esteve no “star system” e no entanto foi uma artista e tanto. Talvez seu parceiro mais constante em cena tenha sido o italiano Marcello Mastroianni; quando Marcello morreu, ela sucumbiu bastante, emocionalmente. Para homenagear esta dama impagável da sétima arte, reproduzo abaixo meu texto sobre Um dia muito especial, provavelmente o cume dos grandes desempenhos de Sophia, certamente aquele filme em que Sophia e Marcello casaram suas interpretações como nunca. Meu texto é de 2003, quando o filme de Ettore Scola foi relançado nos cinemas daqui.

 

No Coração do Fascismo

 

 

São poucos os prejuízos que a passagem dos anos trouxe a ume revisão de Um dia muito especial (Una giornatta particolare; 1977), o mais belo filme assinado pelo italiano Ettore Scola. Estes prejuízos se concentram na maneira meio suja com que a restauração atual recriou o estudado tom desbotado da fotografia de Pasqualino de Santis (neste sentido, mesmo considerando-se as diminutas dimensões da tela, uma restauração em dvd como aquela de Laranja mecânica, 1971, de Stanley Kubrick, é bastante mais fiel visualmente); para o espectador que, no fim dos anos 70, desfrutou a sofisticação pastel das imagens da realização, resta apelar para a memória.

Quanto aos demais aspectos, o trabalho de Scola permanece irretocável em sua capacidade de arrepiar de emoção o observador de hoje. O realizador começa sua narrativa com aquela câmara flutuante que se movimenta, com intimidade, pelas peças do apartamento para ver como a dona-de-casa acordará o marido e os seis filhos para o desfile daquele dia histórico em que Hitler visitará Mussolini em Roma; discípulo do italiano Michelangelo Antonioni, Scola recusa o plano-sequência angustiado e metafísico de Antonioni: o plano-sequência em que Antonieta vai despertando sua família, revelador de um extraordinário senso de espaço cinematográfico, um tanto quanto ausente de boa parte produção de hoje, é outro tipo de plano-sequência, íntimo e familiar. A forma meio descontraída, descritiva, aberta do início do filme vai alterar-se: à medida que a história avança, e as intenções do confronto dos protagonistas da narrativa para questionar o grande dia, os planos gerais (que resgatam o cenário fascista das grandes arquiteturas) se alternam com os primeiros planos fixos (que colocam em cena duas das mais notáveis interpretações do cinema em todos os anos, uma Sophia Loren dona-de-casa composta com as cores do neorrealismo, um Marcello Mastroianni cheio de uma melancólica beleza de expressões) para produzir a sintaxe específica do filme, feita com simplicidade mas também com personalidade própria.

Um dia muito especial tem o tempo exato de cada ação, onde todo gesto adquire uma insubstituível função narrativa. Ao utilizar o cinejornal como introito à ficção que se propunha contar, Scola busca para seu filme uma aproximação com o documentário, uma antecipação do melodocudrama que se disseminaria ao longo dos anos 80. Quando o preto-e-branco do cinejornal é cortado para a grande bandeira fascista desfraldada duma janela, os olhos não sofrem este corte: a imagem anterior é continuada na posterior, pois as cores pastéis se revelam um minúsculo estágio adiante do preto-e-branco. A voz que narra o cinejornal é a mesma voz radiofônica que vai tornar-se o acompanhamento sonoro de fundo (ora mais alto, ora mais baixo) do dia especial de Antonieta e Gabriel, a mulher oprimida e o homossexual perseguido pelo regime; Scola foi bastante feliz ao escolher as duas principais vítimas do fascismo, a mãe de família e o homem que não corresponde à virilidade farsesca do sistema social e político então vigente, para viver esta história de amor silenciosamente contestatória. Se a fotografia do cinejornal se prolonga na do filme, se os sons do cinejornal são revividos pela transmissão radiofônica que ecoa pelos espaços abertos e vazios do prédio por onde Gabriel e Antonieta vão exercitar sua conscientização e desalienação, o dia especial de Hitler e Mussolini vai ter seu antídoto no dia especial dos protagonistas do filme de Scola.

Passados tantos anos de seu lançamento nos cinemas brasileiros, Um dia muito especial revela a eternidade de certos filmes que, para além dos modismos de sua época, têm a capacidade de aprofundar-se no interior de suas personagens. E, ao efetuarmos a comparação com obras recentes do realizador (O jantar, 1998, ou Concorrência desleal, 2001), podemos verificar como aquele antigo frescor clássico de filmar se perdeu num academicismo rançoso.

A objetividade ou transparência dos símbolos narrativos em Um dia muito especial pode ser avaliada nas imagens finais em que Antonieta, antes de ir para cama de seu marido, apaga as luzes da casa, escurecendo o ambiente: ao mergulhar estas cenas finais em sombras, Scola está identificando as sombras com o fascismo. Nesta translucidez de significados Scola difere de seus mestres italianos Luchino Visconti e Federico Fellini, mais barrocos e enviesados em seus signos.

Como curiosidade final deste comentário, quero evocar a encenação teatral que José Possi Neto extraiu do roteiro do filme de Scola nos anos 80, com as interpretações de Glória Menezes e Carlos Zara e que teve apresentações em Porto Alegre em 1986. Tratava-se duma versão teatral bastante detalhista em sua fidelidade ao filme, inclusive naquela imagem hoje clássica em que Sophia Loren (Glória Menezes) acaricia o órgão sexual enrijecido de Marcello Mastroianni (Carlos Zara).

 

(Eron Duarte Fagundes – eron@dvdmagazine.com.br)

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Sobre o Colunista:

Eron Duarte Fagundes

Eron Duarte Fagundes

Eron Duarte Fagundes é natural de Caxias do Sul, no Rio Grande do Sul, onde nasceu em 1955; mora em Porto Alegre; curte muito cinema e literatura, entre outras artes; escreveu o livro “Uma vida nos cinemas”, publicado pela editora Movimento em 1999, e desde a década de 80 tem seus textos publicados em diversos jornais e outras publicações de cinema em Porto Alegre. E-mail: eron@dvdmagazine.com.br

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