O Visionrio Pasolini
Diante de Sal, sentimos que o fascismo inunda tudo. E est bem de acordo com o violento final de milnio em que vivemos
O cineasta italiano Pier Paolo Pasolini foi morto brutalmente em 2 de novembro de 1975 numa praia nos arredores de Roma. Consoante o documentário Pasolini, um delito italiano (1995), rodado por Marco Tulio Giordana, os requintes de crueldade visíveis no cadáver revelavam que o artista fora torturado antes de morrer.
A cada revisão do derradeiro e mais contundente filme do realizador de Teorema (1969), Salò ou os 120 dias de Sodoma (1975) tornam as inquietações do espectador com uma questão central: teria Pasolini pressentido sua morte ao conceber as originalíssimas imagens de Salò? teria (terá?) Pasolini vivido seu Salò enquanto era torturado até a morte por seus algozes? será este o caso da legítima transformação da ficção em realidade, a arte antecipa a vida pelo olhar de um visionário como Pasolini?
Cuido que minha última revisão do filme de Pasolini foi numa noite chuvosa e fria dum inverno dos anos 90 e havia ali um bom grupo de assistentes, a maior parte jovens, para presenciar as loucuras infernais que Pasolini fez desfilar diante de suas câmaras duras e implacáveis. Olhava para aqueles rapazes e moças e observava comigo que muitos deles não tinham nascido quando Pasolini realizou Salò, pouco antes de sucumbir a mãos de fascistas (ainda que a homossexualidade do cineasta possa ter gerado uma situação inicial, toda violência é fascista, todos os que, num ou noutro momento de nossas vidas, nos entregamos a um ímpeto de violência somos fascistas); outros destes jovens, se eram nascidos, tinham pouca idade. E, fitando estes espectadores, era tomado duma curiosidade: que levava alguém embutido na realidade dos anos 90 a buscar contato com uma mente que pensava o mundo nos padrões dos anos 70, ou melhor, que teria a dizer Pasolini a esta juventude de outro tempo?
Nos filmes da trilogia da vida, que antecederam a Salò, Pasolini adotou um humor mais acessível e formas mais abertas e coloridas para expressar um prazer de viver que brutalmente desaparece dos tensos cenários de sua obra-epílogo. Longe da superficialidade de sua trilogia da vida, Pasolini retoma com o espectador um diálogo radical interrompido depois de Teorema (1969). Neste filme dos anos 60 um pintor urinava escrachadamente sobre uma tela. A irreverência da urina do pintor vai multiplicar-se em Salò para gerar uma série de sequências cruéis, que tornam extremas as relações cinema-espectador e fazem da fita uma fruição, para poucos.
São muitas as cenas difíceis de passar pela retina do observador em Salò. Pasolini chega ao ponto máximo do que em estética se poderia chamar “poesia da merda”. Nunca o cinema se aproximou tanto deste conceito quanto neste filme. Pasolini entrega-se a fantasias que misturam erotismo, especialmente homoerotismo, e perversidade, partindo do Marquês de Sade e atingindo o fascismo que mergulhou a Itália na II Guerra Mundial. Pasolini equilibra-se perigosamente numa zona de gratuidade estilística e imaginativa. Misturando suas tendências sexuais com sua visão política, Pasolini estabelece uma sutil criticidade de toda a orgia mostrada.
Diante de Salò, sentimos que o fascismo inunda tudo. E está bem de acordo com o violento final de milênio em que vivemos. O fascismo salta da tela, empesta o ar da sala de projeção; a perversidade criativa de Pasolini faz a grande revelação: somos todos voyeurs fascistas, comemos a merda como a mulher humilhada pelo burguês, espiamos a tortura e nos confundimos com a exclamação de prazer que uma personagem emite ao ver pelo binóculo o torturador extrair o globo ocular do torturado; é terrível, mas nos deslumbra a faca que corta a testa duma pessoa e vai extraindo as vísceras do cérebro; a sexualidade doentia do homem que se extasia com a urina da mulher a encharcar sua barba. Dores, prazeres. Como em Crash, estranhos prazeres (1996), uma polêmica e incompreendida obra-prima do canadense David Cronenberg. Como em outro belo e malvisto filme atual, Táxi (1996), do espanhol Carlos Saura, o terrível libelo antifascista de Pasolini nos dá conta de que algum bicho feroz habita em todos nós.
O fascismo nunca acaba, porque o fascismo é o homem. Este foi o derradeiro sentimento com que o visionário Pasolini se retirou do cinema e logo depois, da vida.
NOTA FINAL: Há algumas convivências paradoxais nas imagens de Salò. A realização de Pasolini está, inicialmente, voltada para o passado com um sentido presente: o fascismo italiano dos anos 40 como metáfora do fascismo dos anos 70, real, cru, como a própria morte do cineasta o demonstrou. Mas, por sua crueza e irrealidade fantasiosa, parece um filme de antecipação: antecipação do que será o século XXI se a marcha do recrudescimento da violência em que está a humanidade seguir neste rumo. Neste aspecto, é curioso observar como Pasolini é muito mais sombrio e vai muito mais longe em sua capacidade de assustar o espectador do que alguns diretores de Hollywood (John Carpenter, por exemplo, com todo o seu talento) que, valendo-se de aparatos tecnológicos, fazem filmes de antecipação da violência.
(Eron Duarte Fagundes – eron@dvdmagazine.com.br)
Sobre o Colunista:
Eron Duarte Fagundes
Eron Duarte Fagundes natural de Caxias do Sul, no Rio Grande do Sul, onde nasceu em 1955; mora em Porto Alegre; curte muito cinema e literatura, entre outras artes; escreveu o livro Uma vida nos cinemas, publicado pela editora Movimento em 1999, e desde a dcada de 80 tem seus textos publicados em diversos jornais e outras publicaes de cinema em Porto Alegre. E-mail: eron@dvdmagazine.com.br