Bovarys Cinematogr?ficas
Cabe dizer que a Bovary eh? uma figura mitica do Ocidente que interessa diferentemente ao cinema
A BOVARY DE JEAN RENOIR
Nos anos 30 do século passado o cineasta francês Jean Renoir edificou um estilo de filmar em que o natural da cena sobressaía, uma prévia do neorrealismo italiano, ambicionava, como escreveu o realizador em Escritos sobre cinema (1974), que tudo parecesse como se “uma câmara invisível filmara as fases de um conflito, sem que isso fosse percebido pelas pessoas arrastadas inconscientemente para a ação.” É dentro deste contexto histórico-estético que se compreenderá melhor esta entidade fílmica que é o Madame Bovary (1934) de Renoir: o diretor toma os elementos da trama de Gustave Flaubert, o autor do romance, e os solta no universo de Renoir, o universo livre e despojado que o diretor vinha exercitando em obras-primas como Boudu salvo das águas (1932) e Toni (1934); não temos amarras literárias, embora seja uma narrativa de época, mas é como se Renoir fosse à província francesa e documentasse as coisas. Estes aspectos naturais da Bovary de Renoir é que a afastam daquilo que fez outro francês, Claude Chabrol: a Madame Bovary (1991) de Chabrol é cerebral e estática e não se desenvolve com a naturalidade das narrativas de Renoir.
Mas isto não significa que Renoir desequilibre seu filme com a justaposição a um texto clássico de elementos aleatórios e precários. Renoir, como o também francês Robert Bresson e o italiano Roberto Rossellini, harmoniza como ninguém a improvisação e o dirigido em cinema; seu rigor e sua espontaneidade são perceptíveis na tensão estética dos movimentos de câmara (há um travelling-para-trás numa estrada perdida no meio do campo, este movimento aparece a interstícios narrativos como um estribilho visual), no justo encadeamento de planos-sequência naturalistas e diretos e numa decupagem rítmica que, sendo elaborada, nunca desdenha das características mais objetivas e sem frescura do cinema.
Renoir utilizou o texto de Flaubert, ambientando-o no próprio tempo do romance do escritor, para debruçar-se sobre o apodrecimento das relações burguesas que se eternizam na sociedade francesa; se a Bovary de Flaubert é um ser estético e até mesmo estático em suas nuanças, a Bovary de Renoir é uma imagem constante e desolada da interiorana da França. É claro que Renoir recorre aos ícones literários da narrativa de Flaubert, como os amores feitos a cortinas fechadas numa carruagem entre Ema e Leon (no filme de Chabrol também voltam estas cenas para sempre na memória de qualquer leitor de Madame Bovary, 1856) e também as leituras sonhadoras da personagem central referidas nos diálogos (o teor fantasista destas leituras sempre fizeram os críticos ver no Quixote de Cervantes o ancestral de Ema), mas tudo isto se encaixa habilmente no feixe de anotações do cotidiano que Renoir executava a medo mas primorosamente na década de 30 do século XX.
Apesar das profundas diferenças e de todos os condimentos que determinam as duas realizações, certamente a Madame Bovary de Chabrol catou algumas coisas básicas na Bovary de Renoir. Uma destas coisas básicas está na interpretação tão íntima quanto distanciada de Valentine Tessier na pele da Bovary de Renoir; a grande atriz Isabelle Hupert, ao expor sua Bovary para Chabrol, se caracterizou um pouco em sua ancestral, pois em alguns planos do filme de Renoir assoma na face da Tessier o fantasma da Huppert (ou é bem o contrário). Chabrol igualmente segue o rigor clássico, de fidelidade ao original exibido por Renoir; o resultado é que difere: enquanto Renoir, experimentando o natural, solta este rigor à emoção, Chabrol aprisiona a densidade emocional dentro do filme-cérebro-literatura que propõe.
Apesar de basicamente fiel ao universo de Flaubert, enxerta uma divisão em partes, com títulos, que não existe no romance; e segue até a morte de Ema, enquanto o livro chega à morte de Carlos. De maneira alguma sobressai no filme de Renoir a estrutura geométrica e complexa do romance: é uma síntese tão autenticamente cinematográfica como se poderia esperar de alguém como Renoir, cujo brilho de narrar em imagens atingiu seu maior poder de concentração em A regra do jogo (1939). O romance de Flaubert começa inserindo aquele fugaz (e que depois desapareceria do restante da narrativa) narrador-personagem-plural que tantos cabelos em pé pôs no escritor peruano Mario Vargas Llosa em seu ensaio A orgia perpétua (1975). Aqueles requintes vagos de memória da sala de aula do início do romance são de cara substituídos, no filme de Renoir, pelos cenários da campanha e pelas desgraciosas figuras em cena, a Ema da Tessier e o Carlos vivido por Pierre Renoir, irmão do realizador, compondo esta figura redonda de burguês.
Para enfeixar, cabe dizer que a Bovary é uma figura mítica do Ocidente que interessa diferentemente ao cinema. Para sair de seu estrelismo e, despojada, adaptar-se ao naturalismo do Renoir dos anos 30. Para uso do cerebralismo pós-nouvelle-vague de Claude Chabrol. E também serve às experiências radicais e não raro incompreendidas do cineasta português Manoel de Oliveira, que a recriou em seu rigoroso e excêntrico Vale Abraão (1993) a partir dum romance da portuguesa Agustina Bessa-Luís.
A BOVARY DE CLAUDE CHABROL
Em linhas gerais, Madame Bovary (1991), de Claude Chabrol, é bastante fiel ao texto do romancista francês Gustave Flaubert; Chabrol utiliza a narrativa-over para cobrir episódios não revelados pela imagem, nestes momentos o texto de Flaubert está preso aos enquadramentos de Chabrol como uma coleira a seu cão. Em Madame Bovary Chabrol realiza mais do que nunca um cinema amarrado pela literatura; os inimigos do cinema francês sempre disseram isto de todo o cinema francês (Eric Rohmer é a principal vítima desta miopia crítica), mas em Madame Bovary de Chabrol as coisas na verdade emperram cinematograficamente.
Jean Renoir, ao que consta o primeiro a filmar o romance de Flaubert, não deixou de manter-se igualmente fiel ao clássico de sua literatura. Não são muitas nem fundamentais as divergências de roteiro entre o filme de Renoir e o de Chabrol. Quando Madame Bovary (1934), de Jean Renoir, começa, Carlos Bovary está casado com outra mulher, as cenas iniciais são bucolicamente campestres; quando a narrativa de Madame Bovary de Chabrol principia, a personagem do médico já está viúvo há oito meses e a sequência de abertura mostra o atendimento que o senhor Bovary faz ao pai de Ema, o qual quebrou a perna. Renoir conclui seu filme com a morte de Ema, um primeiro plano do rosto da atriz Valentine é a imagem derradeira. Chabrol, depois da morte de Ema, utiliza o texto final do romance de Flaubert para revelar a morte de Carlos Bovary; as imagens mostram as pessoas da província de cá para lá. No mais, os episódios de que se vale Renoir são muitas vezes os mesmos aproveitados por Chabrol, uma ou outra alteração de diálogo ou maneira de compor a sequência. O filme de Renoir tem cem minutos. O de Chabrol vai a cento e trinta e seis minutos. A diferença fundamental se dá na junção de dois tópicos: o alto poder de síntese de Renoir e a característica descontraída, solta de seu estilo de filmar. Madame Bovary de Chabrol se perde em digressões que tornam a narrativa arrastada e abusa de certos recursos literários que engessam demais o formato fílmico.
Se os intérpretes de Renoir (Valentine e Pierre Renoir) compõem mesmo os tipos provincianos desgraciosos e desglamurizados, Jean-François Balmer e Isabelle Huppert (apesar da excelência de suas composições) dão seu toque de estrelas que artificializam excessivamente um drama realista. É bem verdade que Huppert é muito mais atriz que Valentine. Sua vivência da morte de sua personagem, no final, por envenenamento, assume alturas vampirescas e um pouco parece calcada nas formas interpretativas da sueca Harriet Andersson como a moribunda Agnes em Gritos e sussurros (1972), de Ingmar Bergman. Isolada do filme, a interpretação de Isabelle nesta cena é muito mais forte e emocionante que a de Valentine interpretando a morte de Ema no filme de Renoir; mas no conjunto fílmico não sei se não seria o caso de preferir Valentine a Isabelle.
Chabrol é um dos grandes diretores do cinema francês, como se pôde ver em A comédia do poder (2006) (e Isabelle Hupert tem emprestado seu extraordinário talento a seu constante diretor); mas Madame Bovary é certamente uma baixa na filmografia do cineasta. É claro que Chabrol tem o dom do refinamento de filmar: tudo é muito elegante, sutil e engenhoso na maneira como se articulam em cena as relações entre o cinema e a literatura; mas, assim como ocorria em Um amor de Swann (1984), que o alemão Volker Schloendorff rodou a partir do romancista francês Marcel Proust, esta sutileza-elegância-engenhosidade encobre um vazio de intenções mas não elimina o gesso estético da realização.
(Eron Duarte Fagundes – eron@dvdmagazine.com.br)
Sobre o Colunista:
Eron Duarte Fagundes
Eron Duarte Fagundes é natural de Caxias do Sul, no Rio Grande do Sul, onde nasceu em 1955; mora em Porto Alegre; curte muito cinema e literatura, entre outras artes; escreveu o livro Uma vida nos cinemas, publicado pela editora Movimento em 1999, e desde a década de 80 tem seus textos publicados em diversos jornais e outras publicações de cinema em Porto Alegre. E-mail: eron@dvdmagazine.com.br