Bernardet Persegue Kiarostami
Caminhos de Kiarostami eh um relato muito pessoal, difuso e perplexo, sobre uma obra cinematogr?fica
Jean-Claude Bernardet, ensaísta brasileiro de cinema que nasceu na Bélgica, é um espírito múltiplo de nossa cultura. É bem verdade que sua principal veia é a análise de filmes. No clássico Brasil em tempo de cinema (1967) ele se debruçava sobre como a classe média brasileira determinava a forma de produção e a estrutura dos filmes, especialmente em seu agudo texto sobre Vidas secas (1963), de Nelson Pereira dos Santos. Em Cineastas e imagens do povo (1985) Bernardet esmiúça, debruçando-se sobre alguns documentários de curta metragem, as tensões experimentadas pela intelectualidade nacional em suas relações com o povo. Finalmente, em O voo dos anjos (1990), ele parte dos primeiros filmes dos brasileiros Júlio Bressane e Rogério Sganzerla para compor psicanaliticamente a estética fílmica.
Todavia Bernardet não é somente o crítico de cinema notável. Rodou o documentário São Paulo, sinfonia e cacofonia (1995), em que, colecionando imagens que o cinema brasileiro apresentou da metrópole paulistana, ele afiava uma perícia de realizador inusitada. É corroteirista de filmes como O caso dos irmãos Naves (1967), de Luiz Sérgio Person, e Um céu de estrelas (1996) e Através da janela (2000), ambos dirigidos por Tata Amaral. Bernardet escreveu uma obra-prima da ficção nacional de hoje: A doença, uma experiência (1996), um relato semidocumental que dá a palavra a um aidético.
Agora Bernardet chega ao mercado cultural com um novo livro sobre cinema. Caminhos de Kiarostami (2004) é uma renovada amostra de seu talento para pensar sobre filmes. No lançamento de seu livro em Porto Alegre, após a exibição de Gosto de cereja (1997), de Kiarostami, Bernardet revelou, com sua ironia refinada, que o livro só saiu porque o filme em cuja produção estaria envolvido sofreu os atrasos comuns entre nós; e mais: teve de concluir apressadamente seu trabalho porque o editor lhe deu uma data, que era a visita do cineasta iraniano ao Brasil. O leitor de Bernardet sente essa pressa de conclusão nas páginas finais do ensaio.
Algumas diferenças entre o atual livro e os anteriores de Bernardet. Parece-me ser a primeira vez em que seu olhar não se volta para o cinema nacional. É um estrangeiro que lhe interessa: Kiarostami. Se é bem verdade que antes já Bernardet aqui e ali se valia de depoimentos de cineastas e de confronto de opiniões, em Caminhos de Kiarostami o procedimento é exacerbado. E o fluxo contínuo e aparentemente desorganizado da exposição da matéria contrasta com o rigor estrutural de alguns outros trabalhos dele.
Um dos vocábulos do título da obra, “caminhos”, indica a maneira de abordagem de Bernardet. Como ocorre o deslocamento nos filmes de Kiarostami: a importância do carro nas narrativas do cineasta, chegando ao processo radical de transformar um automóvel no cenário único de Dez (2002), que é justamente o filme de onde sai o cérebro de Bernardet para iluminar várias questões trazidas pelos outros filmes do cineasta. Caminhos: nestes caminhos o crítico Bernardet persegue o realizador Kiarostami de maneira implacável. Bernardet vai ao carro de Viagem pela Itália (1953), do italiano Roberto Rossellini, para identificar certas origens do cinema de Kiarostami. O carro no cinema talvez esteja mais longe: na carruagem e seus tetos baixos de No tempo das diligências (1939), o faroeste famoso de John Ford, vê só. Muitos usaram o carro para dar movimento a seus filmes cheios de uma lentidão íntima, como o espanhol Carlos Saura em Stress es tres, tres (1968). Mas é em Kiarostami que o filme-carro adquire sua estatura de linguagem; Bernardet esforça-se por entender o estatuto do carro em Kiarostami.
E esta análise do uso do carro como frase cinematográfica desemboca noutra: seria o cinema de Kiarostami o fim das distinções entre ficção e documentário? Antes, bem antes do diretor iraniano, o cineasta alemão Alexander Kluge desfez esta cisão; mas seu processo era barroco, enquanto Kiarostami se vale do despojamento. Curiosamente, Bernardet revela que a ideia de seu ensaio estava em estabelecer um contraste entre o inglês Peter Greenaway (“um artifício que esbanja suas lantejoulas”) e o iraniano Abbas Kiarostami (“cuja linguagem é reduzida a um minimalismo franciscano”), demonstrando no fim que ambos são artificiais, “só que um mascara o artifício enquanto o outro o exibe”.
A questão do falso e da impostura nos procedimentos usados em Kiarostami passa pela presença obsessiva do automóvel (que chega a colar-se no olhar da câmara mimetizando-a) e atinge os truques de encenação de Close up (1989). No fundo, segundo Kiarostami, visto segundo Bernardet, a realidade é só uma questão de aparência.
Caminhos de Kiarostami é um relato muito pessoal, difuso e perplexo, sobre uma obra cinematográfica que, para bem ou para mal, tem modificado nossa percepção visual do mundo.
(Eron Duarte Fagundes – eron@dvdmagazine.com.br)
Sobre o Colunista:
Eron Duarte Fagundes
Eron Duarte Fagundes é natural de Caxias do Sul, no Rio Grande do Sul, onde nasceu em 1955; mora em Porto Alegre; curte muito cinema e literatura, entre outras artes; escreveu o livro ?Uma vida nos cinemas?, publicado pela editora Movimento em 1999, e desde a década de 80 tem seus textos publicados em diversos jornais e outras publicações de cinema em Porto Alegre. E-mail: eron@dvdmagazine.com.br