A Nao-Busca de uma Desaparecida

Filme filosofico e exigente, A Aventura nao deixa de brincar com certos conceitos do cinema comercial desde seu titulo

15/06/2020 13:59 Por Eron Duarte Fagundes
A Nao-Busca de uma Desaparecida

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Numa entrevista ao jornalista gaúcho Roger Lerina (Caderno de Cultura do jornal Zero Hora de 06 de novembro de 2004), o cineasta português Manoel de Oliveira reflexionou: “A literatura é algo muito especial, extraordinário. Um livro é uma peça riquíssima, é um companheiro, vivo. Não está sozinho quem lê. Já o cinema é diferente, está do lado dos espetáculos. Tento tirar esse caráter de entretenimento nos meus filmes para realçar o fundamento humano.” Quem conhece o cinema notavelmente reflexivo do autor de Palavra e utopia (2000) sabe que ele não está tergiversando, nem enganando a ninguém.

O italiano Michelangelo Antonioni é outro artista das imagens em movimento que parece um tanto deslocado no universo para o qual trabalhou ao longo do século XX, o universo cinematográfico.

Mesmo conhecendo a capacidade estilística de Antonioni e sua agudez psicológica, minha descoberta tardia de A aventura (L’avventura; 1959) foi um constante sobressalto. Em 1981, um exibidor alternativo de Porto Alegre, o Ponto Cinema/Cinemateca Gaúcha, chegou a prometer e programar o filme para determinado fim de semana; mas, à última hora, veio a decepção: uma voz esganiçada de mulher informava no microfone da sala que a cópia de A aventura fora totalmente destruída ao ser exibida no fim de semana anterior em São Paulo; antes da era digital, esta destruição de cópias em celuloide foi habitual. Inutilmente em minhas viagens por aí afora naqueles anos busquei este Antonioni desaparecido; permaneceu desaparecido de minha visão até o surgimento dos lançamentos em dvd. Abaixo uma organização de notas quando o vi faz alguns anos.

 A aventura representa uma ruptura formal na obra de Antonioni, em que não somente os temas são complexos mas ainda a própria elaboração de um ritmo cinematográfico contemplativo e minucioso passa a integrar a instância da complexidade. De Crimes d’alma (1950) a O grito (1957), com o pico em As amigas (1955), Antonioni já se revelava um artista raro na sétima arte, preocupado com coisas de que o cinema teimava em afastar-se; é com A aventura, entretanto, que a ousadia estética entra a criar novas composições de filmar, avançando naquele terreno iniciado pelo italiano Roberto Rossellini em obras-primas como Europa 51 (1952) e Viagem pela Itália (1953). O olhar do cinema tem uma modificação a partir de A aventura.

(Roger Lerina, no mesmo Caderno acima aludido, entrevista outro dos grandes cineastas de hoje, o iraniano Abbas Kiarostami, que, ao falar de um de seus últimos filmes, rodado em exasperantes planos-sequência de uma mesma praia, assim se manifesta: “O espectador precisa de outro tipo de satisfação quando senta na poltrona do cinema. Mas, se olhar para Cinco da mesma forma que olha da janela do apartamento dele para dentro de outros lares, ‘Ah, estes são recém-casados, aqueles vão se separar’, ele vai gostar. Se o público levasse esse tipo de curiosidade para o cinema, não precisaria de narrativa. Mas o público não leva...” Kiarostami, de certa maneira um herdeiro de Antonioni e Rossellini, recupera na lente de sua câmara a naturalidade do olhar que temos fora das salas de cinema; nunca com trivialidade, mas com invenção.)

Em A aventura a câmara de Antonioni não tem pressa. Debruça-se sobre os cenários com a mestria característica do diretor; o preenchimento do ambiente ora é despojado, ora é barroco, sai-se tão bem ao voltar-se para a natureza bruta dum mar isolado quanto ao espiar a agitação urbana ou os interiores burgueses. Se aqui Antonioni não conta com intérpretes tão criativos quanto Marcello Mastroianni e Jeanne Moreau, a dupla de A noite (1960), sua forma fílmica sabe impor a seus atores a introspecção requerida. O resultado é uma lentidão única na história do cinema, capaz de descortinar certas parcelas da alma que pareciam impedidas ao cinema.

Filme filosófico e exigente, A aventura não deixa de brincar com certos conceitos do cinema comercial desde seu título: fala-se em filme de aventura para caracterizar o entretenimento cinematográfico; afastando-se daí, Antonioni propõe uma aventura mais abissal, que é um mergulho nas camadas de insatisfação do ser humano. No filme uma mulher, Ana, insatisfeita com seu par amoroso, Sandro, desparece durante um cruzeiro em que o casal em crise embarca juntamente com alguns amigos da burguesia italiana em que por via de regra Antonioni ambienta suas histórias metafísicas; isto serve a Antonioni para criar algum suspense de filme policial. Em Crimes d’alma Antonioni já namorava o gênero policial. Mas o aspecto policial em Antonioni é de naipe diferente. O desaparecimento da mulher em A aventura é mais simbólico do que realista: pouco a pouco o desespero das outras personagens diante da perda duma pessoa querida é esquecido e pouco se fala em continuar buscando-a; sua dileta amiga Cláudia acaba envolvendo-se afetivamente com o par semiviúvo da desaparecida. Antonioni voltaria a usar, de maneira igualmente metafísica, a figura duma mulher que desaparece em Identificação de uma mulher (1982); e o polonês Roman Polanski usaria do gancho antonioniano num de seus trabalhos menos citados, Busca frenética (1988), uma esposa foge das vistas do marido após triviais cenas num quarto de hotel.

Os planos desesperados e tensos de Sandro e Cláudia no fim do filme, buscando um difícil ponto de identidade, são marcantes da procura de Antonioni, que não está atrás da mulher desaparecida mas de sentimentos desaparecidos. Vista em seu todo, a filmografia do cineasta converge para seu cume na “trilogia da incomunicabilidade” formada por A aventura, A noite e O eclipse (1961), onde ele mais do que ninguém revolucionou o cinema da alma; Antonioni fez grandes filmes antes e depois desta trilogia, mas nunca foi tão perfeito em adequar seu senso estético a uma investigação humana.

 

(Eron Duarte Fagundes – eron@dvdmagazine.com.br)

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Sobre o Colunista:

Eron Duarte Fagundes

Eron Duarte Fagundes

Eron Duarte Fagundes é natural de Caxias do Sul, no Rio Grande do Sul, onde nasceu em 1955; mora em Porto Alegre; curte muito cinema e literatura, entre outras artes; escreveu o livro “Uma vida nos cinemas”, publicado pela editora Movimento em 1999, e desde a década de 80 tem seus textos publicados em diversos jornais e outras publicações de cinema em Porto Alegre. E-mail: eron@dvdmagazine.com.br

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