O Rigor de Encenador de Mankiewicz

O Julio C?sar de Mankiewicz eh um grande dialogo historico-estetico

05/11/2020 14:22 Por Eron Duarte Fagundes
O Rigor de Encenador de Mankiewicz

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O americano Joseph L. Mankiewicz é considerado um caso à parte dentro de Hollywood. Apodado de cineasta da palavra por usar de extensos diálogos em suas narrativas cinematográficas, valorizando muito os torneios verbais, a expressão (cineasta da palavra) pode levar a pensar no francês Eric Rohmer, cujos filmes intensamente dialogados são oásis no mundo do cinema, mas o espectador que conhece os dois universos fílmicos sabe que vão abismos estéticos entre a literatura filmada de Rohmer e o espetáculo mais grandiloquente e solene montado por Mankiewicz; artista de fortes ligações teatrais no uso da linguagem, isto faz uma inevitável aproximação, o italiano Luchino Visconti; mas — novamente— ao olhar para um e para outro cineasta temos dificuldade de acoplar o barroquismo mediterrâneo de Visconti às formas sombrias e deslizantes das marcações cênicas de Mankiewicz. Certamente as expressões e os conceitos aproximados explicam pouca coisa do universo estético, algo a que somente o raciocínio continuado, elaborado pode chegar.

Júlio César (Julius Caesar; 1953) é um de seus trabalhos mais rigorosos. Mankiewicz mantém, quase em sua totalidade, fidelidade ao texto de William Shakespeare em que se baseou seu roteiro; Shakespeare, sabemos, retirou os episódios de sua peça das anotações romanas de um grego, Plutarco, mas, ficcionista do teatro, Shakespeare manteve muitas liberdades para criar sua própria história. Pode-se dizer que Mankiewicz foi mais fiel a Shakespeare que Shakespeare a Plutarco. Mas isto não retira do filme sua existência própria como cinema: valendo-se da solenidade de linguagem de Shakespeare, que aos ouvidos de boa parte do espectador contemporâneo do cinema soa inusitado, uma autêntica ruptura, Mankiewicz monta com uma certa lubricidade formal seu filme, o que o adapta, a duras penas é claro, a uma noção de espetáculo cinematográfico ao modo americano. O Júlio César de Mankiewicz é um grande diálogo histórico-estético, atravessando os gregos, detendo-se em Shakespeare, chegando às situações do século XX e ultrapassando-as.

A meditação cinematográfica de Mankiewicz é uma meditação sobre o poder, os elementos em torno e as flutuações manipuladas das massas sob as asas deste poder. Há o dono central do poder, o imperador Júlio César. Há o senado insatisfeito com a megalomania do imperador, neste senado há um rebelde furioso, Cássio, e uma personalidade fraca, Bruto, o amigo de César que o vai matar. E os indivíduos da massa: irritados com o poderoso César, atacado por Cássio e Cícero nas tribunas, estes mesmos indivíduos, após o assassinato de César, se voltam contra os conspiradores, especialmente depois do discurso comovido e manipulador de Marco Antônio diante do cadáver de César. O cadáver do imperador marca a ruptura da primeira hora do filme. Será o cadáver de Bruto, na imagem final, este cadáver carregando a consciência e a culpa, que vai fechar este drama meditativo sobre o poder, rebeliões e as características autofágicas de toda a ambição humana. A direção cinematográfica de Mankiewicz corresponde à grandeza desta empreitada. No texto de Shakespeare há um jogo de palavras que, lidas no filme, se perdem um pouco na prosódia que aparentemente iguala as expressões. É o instante em que um subalterno vai matar Bruto. “Fare you well, my lord”, diz o subalterno, algo como “esteja bem, meu senhor” ou igualmente “adeus, meu senhor”. Bruto, antes de jogar-se na espada do interlocutor, diz, na frase shakespeareana: “Farewell, good Strato”" (“Adeus, bom Estrato”), o “you” na pronúncia da expressão anterior pode passar despercebido na fala cinematográfica.

“The Ides of March are come”, diz César, provocando o vidente, quando ele chega no Senado; o vidente lembra que os idos de março ainda não passaram, e César, cético, segue para seu cadafalso. Na visão de Shakespeare, transformada num cinema original por Mankievicz, o poder corrompe e mata.

Numa cena intermediária, durante as inquietações conspiratórias de Bruto, Pórcia, sua esposa, levanta-se no meio da noite e o surpreende. Ele, espantado, a inquire: “Wherefore rise you now?” (“Por que estás de pé a esta hora?”). Bruto diz a Pórcia que se preocupa com sua saúde frágil por ela estar tão tarde nos ares frios dos corredores do palácio. Pórcia insiste em saber o que o inquieta. Ele rejeita dizer-lhe. Conspirador solitário, apesar da companhia dos pares, Bruto encaminha a morte de César mas também a sua própria, mais adiante: são os solitários do cadafalso, duas versões. O vidente de César ou a mulher de Bruto pouco podem fazer ainda que o admoestem. Solitário, corrupto, assassino e suicida: eis o poder ao longo das eras.

O elenco de Júlio César é curioso. Louis Calhem como César domina, com sua imponência, a primeira parte do filme; James Mason como Bruto e John Gielgud como Cássio fazem algumas sombras e Marlon Brando como Antônio é aparição precisa e escassa. No ato da morte de César, o discurso de Antônio diante do corpo de César permite a Brando um de seus inesperados achados shakespeareanos. Brando faz a intermediação entre as duas partes do filme. A segunda parte é dominada por Bruto na pele de Mason, com a sombra de Cássio interpretado por Gielgud.

 

(Eron Duarte Fagundes – eron@dvdmagazine.com.br)

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Sobre o Colunista:

Eron Duarte Fagundes

Eron Duarte Fagundes

Eron Duarte Fagundes é natural de Caxias do Sul, no Rio Grande do Sul, onde nasceu em 1955; mora em Porto Alegre; curte muito cinema e literatura, entre outras artes; escreveu o livro “Uma vida nos cinemas”, publicado pela editora Movimento em 1999, e desde a década de 80 tem seus textos publicados em diversos jornais e outras publicações de cinema em Porto Alegre. E-mail: eron@dvdmagazine.com.br

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