A Vida Transformada em Arte
Flávio Tavares, jornalista político dos inquietos anos 60, deu à luz sua obra vital, Memórias do Esquecimento
Flávio Tavares, jornalista político dos inquietos anos 60, jovem de esquerda que inevitavelmente se atirou a uma luta armada mas idealista para transformar o mundo, teve uma vida pessoal e pública tão tumultuada que poderia render um daqueles prodigiosos filmes policiais-políticos do realizador greco-francês Constantin Costa-Gavras. Flávio, homem culto, sensível, leitor apaixonado e múltiplo, deixou adormecer o escritor ao longo de mais de sessenta anos de vida (ou terá no passado cometido alguma outra aventura literária que este pobre escriba desconheça e a orelha de seu atual livro teria ocultado?) em nome do jornalismo e da atividade políticos.
Pouco antes de voltar a viver em Porto Alegre, terra gaúcha de onde primeiramente suas ambições políticas (no melhor sentido da expressão) o retiraram e depois o exílio imposto pela ditadura militar o jogou para mais longe, Flávio deu à luz sua obra vital, Memórias do esquecimento (1999). Jornalista, ou historiador do cotidiano, Flávio não se abalançaria a escrever o romance da ditadura militar, pois necessitava da realidade para seu texto; mas fez algo parecido: como num romance, sua história, ou suas histórias, simboliza(m) as histórias de outros tantos brasileiros que, na época da repressão, tiveram suas vidas familiares rompidas —filhos afastados, mães longínquas, amizades interrompidas, namoros perdidos.
Objetividade descritiva alterna-se com trechos de profundo senso poético; a tensão do horror das torturas é contrabalançado pela nervura lírica de algumas frases. Flávio conta basicamente suas histórias, as que viveu na carne e no osso, alargando-lhes o sentido para além de seu sofrimento individual; mas sabe inserir, com a mestria haurida nos narradores literários que tanto ama (as epígrafes que encimam os capítulos de seu livro revelam um leitor arguto, múltiplo e apaixonado), as histórias de outros que seus generosos olhos souberam ver. Entre estes contos luminosos paralelos está a daquela ambígua relação entre a torturada que seduz o torturador para salvar a si e ao namorado; é na acuidade de observações de condutas nebulosas (“E assim, dando-lhe prazer e cada vez mais poder, tirando-o por instantes daquele mundo de horror em que ele sentia prazer, ela fez que o torturador traísse o mundo soturno do interrogatório e da tortura e cada vez tivesse mais prazer, pois cada vez se sentia mais poderoso.”) que o texto de Tavares justifica o elogio do escritor argentino Ernesto Sabato: páginas dignas de Dostoievski.
Na linha de Memórias do cárcere (1953), de Graciliano Ramos, mas num tom menos impessoal e menos seco, o Memórias do esquecimento de Flávio Tavares é outro mergulho atroz em trevas ditatoriais que de quanto em quando se têm abatido sobre a sociedade brasileira. Transformando sua vida numa obra de arte, Tavares inicia sua narrativa como se estivesse escrevendo uma carta de amor. Quem é a personagem da amada que ele beija na primeira oração de seu livro? Sua amada certamente, mas igualmente um signo das novas gerações que desconhecem visualmente o terror que Flávio viveu nos porões da ditadura.
Sobre o Colunista:
Eron Duarte Fagundes
Eron Duarte Fagundes é natural de Caxias do Sul, no Rio Grande do Sul, onde nasceu em 1955; mora em Porto Alegre; curte muito cinema e literatura, entre outras artes; escreveu o livro ?Uma vida nos cinemas?, publicado pela editora Movimento em 1999, e desde a década de 80 tem seus textos publicados em diversos jornais e outras publicações de cinema em Porto Alegre. E-mail: eron@dvdmagazine.com.br