Cinema, ou A Arte do Desterro
Maria Clara Escobar traz para seu filme Desterro (2020) justamente isto: o cinema como a arte do desterro
Maria Clara Escobar traz para seu filme Desterro (2020) justamente isto: o cinema como a arte do desterro. Aquelas pequenas coisas de nossas vidas que agem no mundo como se estivessem num exílio: melhor, num degredo, uma colônia penal longe de nossas memórias afetivas. Um sentimento narrativo de estranheza é o que perpassa cada imagem de Desterro. A sequência inicial acompanha um casal em seu café da manhã: dizem banalidades que parecem fazer o tempo estacionar em cena; é o mais absoluto anticinema na concepção do espetáculo, mas é um cinema adiante da ação e do drama, quando estas coisas se esgotaram por seu próprio tédio. Quem tem a informação de que Maria Clara foi corroteirista de Histórias que só existem quando lembradas (2011), de Júlia Murat, vai identificar o mesmo gosto por diálogos lentamente absurdos, reiterativos; naturalmente, Maria Clara e sua direção de Desterro parece mais extraviada que Júlia em seu filme.
No roteiro de Desterro colaboraram Caetano Gotardo (realizador de outra excentricidade, Todos os mortos, 2020) e Carla Kinzo (que em Desterro vive a mulher que abre o filme com seu marido ao café e depois vaga num exílio abstrato e existencial até a morte). De chofre, logo após a sequência esquisita do café, a câmara de Maria Clara desembarca num trem. A câmara surpreende duas mulheres que se encontram e evocam uma antiga relação afetiva entre elas. A conexão com a abertura da narrativa se dá quando a câmara, ainda acompanhando a parte final do diálogo entre as duas ex-amantes, depara com a figura da mulher que estava na sequência anterior. Desterro é construído em boa parte como retalhos que se inter-relacionam; são conexões secretas o mais das vezes, mas estética e do ponto de vista da filosofia narrativa, sedutoras.
Imagens inóspitas é o que não falta em Desterro. Numa longa sequência, a câmara persegue o andar a bordo de uma moto (deduz-se, pois a moto não está no quadro), vemos somente a cabeça e o tronco da personagem como andar em voo pelos ares, há um discurso-off sobre o absurdo da morte de sua mulher no estrangeiro e as constrangidas burocracias para resolver o problema. O ângulo da câmara, o comportamento do ator, aquela ideia de alguém vagando como se estivesse voando (onde ele está mesmo, já que o espaço foi jocosamente decupado?) tornam esta cena tão esdrúxula e desorientadora; mas ela é a chave de muitas coisas no filme, inclusive da paranoia estética que é passada ao observador.
Em outras sequências Desterro parodia um documentário de entrevistas. Quando a câmara, em plano fixo, longo, ouve a atriz-personagem relatando dilemas num estágio entre a catarse e o poético: imita um depoimento, mas é uma reconstituição poética do ser. Há pelo menos duas sequências assim, ao modo depoimento, com duas mulheres diferentes. Evoca certos modelos de filmar de Eduardo Coutinho em alguns filmes.
Se voltarmos os olhos para a realidade do cinema no mundo de hoje, e especialmente do cinema brasileiro, notaremos que Desterro é uma metáfora do cinema e de nós próprios como espectadores: somos desterrados na terra do cinema, nossa própria terra.
(Eron Duarte Fagundes – eron@dvdmagazine.com.br)
Sobre o Colunista:
Eron Duarte Fagundes
Eron Duarte Fagundes é natural de Caxias do Sul, no Rio Grande do Sul, onde nasceu em 1955; mora em Porto Alegre; curte muito cinema e literatura, entre outras artes; escreveu o livro Uma vida nos cinemas, publicado pela editora Movimento em 1999, e desde a década de 80 tem seus textos publicados em diversos jornais e outras publicações de cinema em Porto Alegre. E-mail: eron@dvdmagazine.com.br