A Literatura eh o Avesso
O narrador criado por Jeferson Tenorio em O avesso da pele (2020) tem um vies duplo
O narrador criado por Jeferson Tenório em O avesso da pele (2020) tem um viés duplo. É no princípio uma narrativa em primeira pessoa: quem conta a história é uma personagem central. Mas desde o início esta primeira pessoa se dirige a uma segunda pessoa, um “você” constante que assume o centro da ação romanesca o mais das vezes, porém sem tirar da cena central aquele que conta a história. Deste cruzamento entre duas pessoas que parecem narrar o romance (um de maneira objetiva, o “eu”; outro meio à socapa, o “você” incorporado pelo “eu”), desta tênue linha de complexidade narrativa, Tenório extrai uma das muitas originalidades de seu livro.
Na história montada pelo romancista o “você” é pai do “eu”. A história do “você” evocada a todo o instante pelo “eu” joga algumas luzes sobre o “eu”, sua vida, seus comportamentos, sua trajetória em busca duma desalienação, considerando-se a alienação como um mergulho no vazio e na inconsciência. Até que ponto o processo estético de Tenório, foi consciente ou nasceu de acasos e descobertas instintivas, só o autor poderá esclarecer; mas o que o leitor vê nas páginas é a construção rigorosa duma relação (ou relações) narrativa entre o “eu” e o “você”, este recebendo a palavra daquele, aquele existindo neste. Lentamente, o espanto novo de contar (ou recontar) a história do país pelas lentes dos perseguidos e desfavorecidos assalta o observador. Não deixa de ser um êxtase esta descoberta de regiões estranhas e agudas num texto de aparências simples, tão admiravelmente escrito que se assemelha a uma carta ao pé do ouvido em que o “você” destinatário se converte, aos poucos, tanto no narrador original (o “eu”) quanto no leitor a quem no fundo um livro é dirigido (você, o leitor destas linhas).
O primeiro capítulo fecha-se com esta tensão entre o “eu” e o “você”. “Teu caos me comove. Olho para tudo isso e percebo que serão esses objetos que vão me ajudar a narrar o que você era antes de partir. Os mesmos utensílios que te derrotaram e que agora contam sobre você. Os objetos serão o teu fantasma a me visitar.”
No jogo cruzado que é a narrativa de Tenório, as relações afetivas do “eu” se espelha um pouco nas relações afetivas do “você”. Sim, certo, como diz o narrador (o “eu”? o “você”?), “a psicanálise tinha cor e era branca”, “definitivamente havia coisas que escapavam a Freud”. A mecânica da lógica relacional da narrativa de Tenório vem a ser outra. Sharienne é uma namorada negra do “eu” negro que vai contando a sua história ao mesmo tempo em que faz iluminar pela história do “você” negro que o antecedeu; o pendor intelectual da garota perturba o rapaz, então ele recorre às lembranças das conversas com o pai, um professor, um literato, para compensar: o “eu” assume-se no “você”. E o “você” negro teve namoradas brancas e nestes relacionamentos os conflitos racistas se exacerbaram: Suellen, Juliana. No entanto, o grande conflito se situou na descoberta de Crime e castigo, o romance de Dostoievski: melhor dito, na descoberta da personagem de mente curva que é Raskólnikov. Quem indicou este livro ao “você” segundo narrador foi um professor; o “você” disseminou as tensões da narrativa de Dostoievski em leituras em salas de aula, um aluno negro, Peterson, recebe o impacto e as dúvidas desta leitura, tenta traduzi-la para sua interpretação, a distante realidade russa de Crime e castigo adapta-se transversamente a seu avesso, a realidade racista brasileira, seus crimes, seus castigos, os arrependimentos que deixam de ser externados, violências e mágoas acavaladas como num monturo para que tudo se exploda num panfleto nervoso que só é salvo ou posto a uma luz transparente pelo engenho de um artista da palavra.
No capítulo três do último trecho do romance, “A barca”, um policial sonha que homens negros estão invadindo seu apartamento. “Ao virar-se, o policial vê um homem no meio da cozinha apontando uma arma para ele.” No capítulo 8, provavelmente o clímax dramatúrgico do texto de Tenório, se dá a abordagem policial em que o “você”, entusiasmado com Dostoievski e seus alunos, mais na São Petersburgo do século XIX que na prosaica Porto Alegre de sua contemporaneidade, é morto, por ser um homem negro, por estar mais interessado em literatura que em obedecer a policiais. “O terceiro tiro foi dado por ele, pelo policial que vinha tendo pesadelos com homens negros invadindo a sua casa.”
A questão na literatura, neste alvorecer de milênio, finalmente já não é saber se Capitu traiu Bentinho: que Machado de Assis descanse em paz. A questão agora é saber como Ogum conversa com Shakespeare, é um pouco como ouvir Maria Bethânia cantando Edith Piaf (a interpretação de Bethânia para “Je ne regrette rien”). Lá pelo começo de O avesso da pele o “eu” anota sobre a história do “você”: “Neste período, você ganhou peso, sua úlcera fechou e não havia mais uma ferida aberta no seu estômago, mas às vezes, quando você chora, quando lembra que pode chorar, você tem a sensação de que aquela ferida de meio centímetro sempre esteve dentro de você, desde o momento que nasceu até sua vida adulta.” Terá mesmo a ferida da úlcera cicatrizado? A úlcera material é o signo da ferida antropológica brasileira, nosso racismo? “Vou em frente, na direção do Guaíba”, escreve o narrador, o “eu”, na penúltima frase do livro. Só a literatura, que em seus grandes momentos é o avesso das coisas, pode iluminar os ambíguos caminhos da vida, indo em frente na direção desta mesma vida.
(Eron Duarte Fagundes – eron@dvdmagazine.com.br)
Sobre o Colunista:
Eron Duarte Fagundes
Eron Duarte Fagundes é natural de Caxias do Sul, no Rio Grande do Sul, onde nasceu em 1955; mora em Porto Alegre; curte muito cinema e literatura, entre outras artes; escreveu o livro ?Uma vida nos cinemas?, publicado pela editora Movimento em 1999, e desde a década de 80 tem seus textos publicados em diversos jornais e outras publicações de cinema em Porto Alegre. E-mail: eron@dvdmagazine.com.br