O Espectador Eh uma Galinha

Ha sempre beleza e poesia em qualquer obra de Fellini. E la nave va esta cheio de uma ternura felliniana

08/09/2021 19:49 Por Eron Duarte Fagundes
O Espectador Eh uma Galinha

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Numa determinada cena de E la nave va (1983) uma destas personagens esquisitas que o realizador Federico Fellini retirava de sua cartola se concentra em hipnotizar uma galinha. Para espanto de todos, o pretendido hipnotizador logra êxito e a galinha de fato adormece. Ninguém na história do cinema soube hipnotizar o espectador como Fellini, e fazer deste espectador uma galinha submissa aos devaneios do cineasta. Com o passar dos anos e dos filmes muitos espectadores se enfadaram deste ou daquele espetáculo levado aos cinemas pelo diretor italiano;  E la nave va tem seus admiradores cativos, certo, mas na fundo se trata dum Fellini empacado em suas metáforas e cujo ritmo narrativo em certos momentos se arrasta, revelando uma certa queda da criatividade do cineasta; no entanto, inegavelmente, mesmo aí, em seu estado não tão vertiginosamente sedutor, Fellini nos hipnotiza e transforma em galinhas de seu auditório.

Há sempre beleza e poesia em qualquer obra de Fellini. E la nave va está cheio de uma ternura felliniana, com a incursão por aquelas madrugadas marítimas que remetem a seus instantes mais felizes. Ao filmar a viagem-homenagem de navio de um grupo de admiradores de uma diva da ópera italiana para, cumprindo um último desejo dela, jogar ao mar as cinzas da estrela morta, Fellini utiliza um narrador-auxiliar que é o porta-voz do realizador em cena; o jornalista a bordo faz a crônica dos eventos sublinhando de observações a própria crônica cinematográfica que o cineasta está rodando. Acima de tudo um cronista em imagens, apesar dos delírios esquisitos a que se foi cada vez mais entregando, Fellini quer fazer da embarcação de E la nave va o microcosmo de uma época, a das vésperas da I Guerra Mundial em 1914: para isto aparecem os náufragos sérvios, cujo aspecto bárbaro invade a sofisticação da burguesia italiana ao serem resgatados pelo capitão; e também por isso apareceu o navio de guerra austro-húngaro que exigia a entrega dos sérvios. Aí, a guerra estoura: paródia do que aconteceu de fato naqueles dias do início do século XX.

O sonambulismo da colocação cênica ou dos movimentos das personagens, característica do estilo felliniano, empresta um caráter único a certas imagens de E la nave va. No final, ao desfazer a ilusão de sua magia mostrando seus trabalhadores cinematográficos diante da parafernália de cenário criada, Fellini parece um tanto quanto gratuito: falta-lhe a complexidade da metalinguagem utilizada em Oito e meio (1963). As cores sépias que abrem a narrativa, simulando um cinema mudo da época, voltam ao término quando o cronista dá suas últimas explicações remando uma singela canoinha.

Nascido no neorrealismo desde sua assistência de direção para seu patrício Roberto Rossellini, Fellini foi buscando cada vez mais penetrar nos exageros da louca orgia de imagens da mente humana. E la nave va é, bem ou mal, um dos últimos arpejos desta maneira de fazer cinema que dá saudade.

 

(Eron Duarte Fagundes – eron@dvdmagazine.com.br)

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Sobre o Colunista:

Eron Duarte Fagundes

Eron Duarte Fagundes

Eron Duarte Fagundes é natural de Caxias do Sul, no Rio Grande do Sul, onde nasceu em 1955; mora em Porto Alegre; curte muito cinema e literatura, entre outras artes; escreveu o livro “Uma vida nos cinemas”, publicado pela editora Movimento em 1999, e desde a década de 80 tem seus textos publicados em diversos jornais e outras publicações de cinema em Porto Alegre. E-mail: eron@dvdmagazine.com.br

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