Um Tratado Sobre o Ciume

Em A sonata de Kreutzer Rohmer ensaia um pre-conto-moral

10/12/2021 17:07 Por Eron Duarte Fagundes
Um Tratado Sobre o Ciume

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A sonata de Kreutzer (La sonate à Kreutzer; 1956), um filme de média-metragem que o francês Éric Rohmer realizou a partir da novela do escritor russo Lev Tolstoi, é filmado como se estivesse na época do cinema mudo: os intérpretes abrem as bocas mas não há som. Dentro deste sistema de linguagem, exige-se bastante dos corpos e do gestual dos atores. A sequência de abertura, por exemplo, traz um tour-de-force das encenações do próprio Rohmer (que vive o marido traído) e de Françoise Martinelli (a esposa adúltera), eles como que dançam e lutam dentro dos inusitados enquadramentos da câmara de 16 mm de Rohmer. É um pouco como se o cineasta voltasse ao cinematógrafo: aí se remete ao mestre do cinema do espírito na França, Robert Bresson.

Mas, na faixa sonora acoplada ao filme mudo encenado, há a voz do narrador por sobre as imagens e os acordes da sonata de Kreutzer que o alemão Ludwig Van Beethoven compôs em 1803. Esta voz-over do narrador, logo após aquele equilíbrio-desequilíbrio dos corpos de Rohmer e Françoise no cinema calado, introduz a história. “Non, ce n’est pas la jalousie” (“Não se trata de ciúme”). Mas no fundo é de ciúme que se trata. E de adultério feminino. E dum crime de amor: como no texto de Tolstoi, o marido mata mulher adúltera com uma faca. Na trama de Tolstoi, numa carruagem dois homens conversam, é pela narrativa de um deles (o marido corneado) que o leitor vem a saber da história. No filme de Rohmer o marido toma a voz-over para ajudar o filme mudo a contar os episódios que conduzem à traição da mulher e ao homicídio. A diatribe anticonjugal de Tolstoi é feroz: sua misoginia e sua convulsa fúria sobre as relações sexuais são históricas e geraram muitas discussões em sociedades onde os costumes se metamorfoseiam celeremente. Rohmer, não: é um artista mais deslizante, muito menos arrebatado que o romancista russo; em A sonata de Kreutzer Rohmer ensaia um pré-conto-moral. Com sua sensibilidade e sua inteligência geniais de sempre.

Uma das cenas emblemáticas de A sonata de Kreutzer é aquela das filmagens nos escritórios dos Cahiers du Cinéma. Rohmer era um destes escritores-cineastas que, escrevendo sobre filmes, queriam fazer os seus filmes. Assim, na sequência dentro dos Cahiers, Rohmer filma os seus. Ali vemos André Bazin, Claude Chabrol (de óculos, sentado, sisudo e no entanto sarcástico olhando para o plano seguinte da montagem), François Truffaut (Truffaut aparece neste plano seguinte ao de Chabrol tagarelando feericamente ao telefone, é quase como se ouvíssemos, embora não haja o som dentro da cena), Charles Bitsch. Nos anos 80, o cineasta gaúcho Carlos Gerbase fez algo parecido ao filmar em Super-8 seu Inverno (1983), indo às redações dos jornais da cidade de Porto Alegre para filmar os críticos de cinema porto-alegrenses em seus trabalhos. É curiosa esta associação entre o filme de Rohmer e o de Gerbase, embora a nouvelle vague e os Cahiers fossem incontornáveis para quem lidasse com cinema nos anos 80 por aqui e no mundo. Mas A sonata de Kreutzer permaneceu inédito até 2013, não imagino que Gerbase possa ter invadido os arquivos da Cinemateca Francesa para se inspirar em Rohmer. A hipótese é que as motivações dos que tratamos de cinema (ou de literatura, ou de pintura) se ligam por algumas afinidades. São estas afinidades que podem conectar duas obras tão distantes em quase tudo, como A sonata de Kreutzer e Inverno: a ideia de filmar os que pensam o cinema como personagens de cinema.

 

(Eron Duarte Fagundes – eron@dvdmagazine.com.br)

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Sobre o Colunista:

Eron Duarte Fagundes

Eron Duarte Fagundes

Eron Duarte Fagundes é natural de Caxias do Sul, no Rio Grande do Sul, onde nasceu em 1955; mora em Porto Alegre; curte muito cinema e literatura, entre outras artes; escreveu o livro “Uma vida nos cinemas”, publicado pela editora Movimento em 1999, e desde a década de 80 tem seus textos publicados em diversos jornais e outras publicações de cinema em Porto Alegre. E-mail: eron@dvdmagazine.com.br

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