A Cosmopolis de Delillo
Cosmopolis eh o que se poderia chamar uma narrativa hiper-realista
O escritor norte-americano Don DeLillo dedica seu romance Cosmópolis (2003) a seu patrício e também ficcionista Paul Auster. Pode-se dizer que aqui a dedicatória faz parte da própria construção romanesca de Cosmópolis. A figura literária de Auster (quem conhece seus textos sabe disto) liga-se à própria excentricidade do cotidiano. Então esta relação amical DeLillo-Auster se embute no próprio âmago das relações estéticas que os envolvem. Cosmópolis é o que se poderia chamar uma narrativa hiper-realista: os exageros de imaginação e linguagem estão inteiros ali, porém tudo é composto por DeLillo num arcabouço de extrema lógica de narrar. O cineasta canadense David Cronenberg transpôs o livro para cinema, mas ficou no meio do caminho das intenções: neste caso, afirma-se , estranhamente, que é pena que o cinema não é literatura —faltam-lhe as palavras como estão na página escrita, silenciosas ou de sons mentais —o que se pode acusar de ser um grito torto de postular incoerências deste cinéfilo-leitor.
Cosmópolis, uma ficção científica da pós-pós-modernidade, época da geração artificial de corpos e cérebros, traz como personagem central um especulador financeiro e cibernético que enriquece sem produzir nada: é o sopro do vazio da sociedade e da economia contemporâneas. Talvez nenhuma imagem criada pelo cinema pudesse dar conta de certas paragens de Cosmópolis, uma geografia intensamente literária. Embora DeLillo, homem do século XX, tenha a força do cinema na ponta do verbo. Como se verá a seguir (ou é apenas mais uma incongruência deste comentarista):
“É claro que havia um contexto. Alguém estava fazendo um filme. Mas isso era só um referencial. Os corpos eram fatos brutais, nus na rua. Tinham um poder todo seu, que não dependia das circunstâncias em torno do evento. Mas era um poder curioso, ele pensou, porque havia algo de tímido e lânguido na cena, algo de íntimo. Uma mulher tossiu, sacudindo a cabeça e o joelho. Ele não sabia se faziam papel de mortos e só de desacordados. Aqueles corpos lhe pareciam ao mesmo tempo tristes e ousados, e mais nus do que jamais haviam ficado na vida.”
“Ele olhou para um ponto atrás de Chin, para os fluxos de números correndo em direções opostas. Ele compreendia a importância que tinham para ele aqueles dados a fluir e pisar numa tela. Examinou os diagramas que formavam padrões orgânicos, asa de pássaro, concha de ostra. Era superficialidade achar que os números e tabelas eram a compressão fria de energias humanas refratárias, todo tipo de anseio de suor noturno reduzido a umidades lúcidas no mercado financeiro. Na verdade, os dados eram coisas que tenham alma, que reluziam, um aspecto dinâmico do processo vital. Era essa a elegância dos alfabetos e sistemas numéricos, que agora atingiam seu ápice no formato eletrônico, no mundo de uns e zeros, no imperativo digital que definia a respiração de cada um dos bilhões de habitantes do planeta. Aqui estava o pulso da biosfera. Nossos corpos e oceanos estavam aqui, cognoscíveis, íntegros.”
(Eron Duarte Fagundes – eron@dvdmagazine.com.br)
Sobre o Colunista:
Eron Duarte Fagundes
Eron Duarte Fagundes é natural de Caxias do Sul, no Rio Grande do Sul, onde nasceu em 1955; mora em Porto Alegre; curte muito cinema e literatura, entre outras artes; escreveu o livro ?Uma vida nos cinemas?, publicado pela editora Movimento em 1999, e desde a década de 80 tem seus textos publicados em diversos jornais e outras publicações de cinema em Porto Alegre. E-mail: eron@dvdmagazine.com.br