As Vozes Brasileiras da Contemporaneidade
Quando come?ou a rodar seu filme, Sandra nao sabia o que estava por vir
A primeira imagem é uma não-imagem: uma tela escura. O que se dá “a ver” ao espectador é a voz duma mulher, que diz que aceita participar do filme, mas também diz temer que a cineasta, como todas essas pessoas do cinema, seja de esquerda, que queira manipular o que ela como entrevistada vai dizer no filme. No fim do filme vemos um outro entrevistado de direita, da realizadora-entrevistadora só tempos a voz, o entrevistado a chama de Sandra, a entrevistadora lhe chama Ferreirinha, o que cria uma intimidade buscada na conversa, ainda que a entrevistadora tente pôr na parede as argumentações do entrevistado e este no cabo da sequência se exaspere, diz que ele e ela vivem em realidades diferentes, com informações diferentes. Estas duas sequências postas nos extremos do filme No céu da pátria nesse instante (2023) revelam as intenções de sua diretora, a brasileira Sandra Kogut, ao fazer o documentário: procurar por um quase inalcançável diálogo entre as vozes brasileiras da contemporaneidade.
Quando começou a rodar seu filme, Sandra não sabia o que estava por vir. Era uma reportagem em imagens e sons em torno das eleições de 2022, talvez a mais neurótica de todas as que vieram depois da redemocratização do país. O filme acompanha os passos da campanha, os ânimos exultantes ou transtornados diante da vitória de Lula, os vandalismos em Brasília nas sedes do Congresso Nacional, do Palácio do Planalto e do STF em oito de janeiro de 2023. Sandra se vale muito de seu rigor jornalístico (ela é acima de tudo uma jornalista) para evitar a fácil emotividade dos elementos em cena. Naturalmente, um documentário tem a posição de quem o dirige, pelas cenas que usa, pela articulação da montagem, por um detalhe da relação ideia-imagem; Sandra, uma jornalista no cinema, se esforça por disfarçar esta subjetividade documental numa objetividade da forma cinematográfica. No que difere de outra documentarista brasileira, Petra Costa, que tem tratado esses temas em obras como Democracia em vertigem (2019) e Apocalipse nos trópicos (2024); Petra busca entender os processos fora de seu eixo mental, não propriamente conversar com estes outros lados, como faz Sandra, a estética de Petra é mais íntima e poética, a de Sandra se parece com uma cirurgia, os passos medidos como num relato mais ou menos científico.
A ação cinematográfica de Sandra Kogut, em No céu da pátria nesse instante, vai na mesma linha de fria investigação de Um passaporte húngaro (2001), um de seus trabalhos anteriores, ainda que o assunto particular de sua caminhada burocrática em busca de seu passaporte húngaro não tenha a explosividade dos atuais conflitos políticos brasileiros.
(Eron Duarte Fagundes – eron@dvdmagazine.com.br)
Sobre o Colunista:
Eron Duarte Fagundes
Eron Duarte Fagundes é natural de Caxias do Sul, no Rio Grande do Sul, onde nasceu em 1955; mora em Porto Alegre; curte muito cinema e literatura, entre outras artes; escreveu o livro Uma vida nos cinemas, publicado pela editora Movimento em 1999, e desde a década de 80 tem seus textos publicados em diversos jornais e outras publicações de cinema em Porto Alegre. E-mail: eron@dvdmagazine.com.br
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