Nem Tudo Eh Mentira
Max e os Demonios, talvez um romance de ensaios que ensaia um processo desmistificador
Pouco depois da centésima página de Max e os demônios (2020), de Gilberto Schwartsmann, pode-se ler: “Na noite anterior, Leonor havia relido ‘La biblioteca de Babel’, por sugestão de sua amiga e professora da Universidade de Bolonha, Lea Dorothea Masina.” Leonor é a esposa do autor, Gilberto: aparentemente uma pessoa real, portanto. No Rio Grande do Sul há uma ensaísta chamada Lea Masina: a Lea gaúcha andou ensinando na Itália? É uma homônima italiana? O livro de Gilberto, nem ali nem mais adiante, não dá maiores detalhes desta personagem. Praticamente em todos os episódios relatados no livro o autor transita, nesta maneira ambígua e diversionista, entre o real e o inventado. Lá pelas tantas há sensação de que tudo é mesmo invenção: ainda que possa ter bases reais.
Virando a página em que topamos com a alusão a Lea, lê-se, tratando do escritor argentino Jorge Luis Borges: “Outra obra que adoro dele é ‘O livro dos seres imaginários’, bestiário com cento e dezesseis monstros que aparecem nas mitologias e religiões de várias gerações do mundo. Reunindo histórias de gnomos, fadas e a imaginação literária de Homero, Shakespeare, Flaubert, Kafka e outros, Borges recomenda que usemos o livro como quem se diverte com um caleidoscópio.” Que é mentira, que é verdade em Max e os demônios? Este é o grande jogo do texto de Schwartsmann: a narrativa de ensaios de que ele se reveste (a maioria ensaios sobre livros, mas há também algo da política, alguma coisa da pintura ou um ponto de cinema) parte duma extravagância central determinada, no livro, pelo encontro com uma fotografia: “Nela, Trótski estava em pé, rodeado por um grupo de simpatizantes. Um deles me chamou a atenção. Ele pertencia à esquerda norte-americana. Chamava-se Max Shachtman.” A partir da descoberta de Max, Gilberto cria uma autopersonagem que, em sua irônica megalomania, se julga parente de todos os grandes homens, especialmente grandes escritores, como o italiano Dante, por exemplo, “éramos descendentes do grande Dante Alighieri”; Max é a confluência de toda a nobre genealogia desta personagem que se disfarça (uma mentira-verdade) de autor. No entanto, os ensaios incrustados em Max e os demônios são verdadeiros, pode comprovar quem leu ou viu as obras aludidas; o demencial ficcional, que se desmascara lá pelo fim da exposição com a revelação de que os demônios Melina (a amante de todos) e o russo Akunin (um esperto falso investigador de gêneses) são farsantes internacionais (os ditos demônios de Max e Gilberto), é uma construção de narrar que parece buscar dar unidade a este grande mosaico cultural —intenso e agudo— que é Max e os demônios, escrito com muita generosidade pelo autor para dividir com almas semelhantes este sentimento: “A literatura deu sossego aos meus demônios.” Sim: somos mentirosos os que fazem ou consomem literatura, mas não no sentido que há do lado de fora da arte, o sentido é outro, o sentido é o do poeta português Fernando Pessoa (“O poeta é um fingidor”) ou o do diretor de cinema italiano Federico Fellini (“Eu sou um grande mentiroso”); mas nem tudo é mentira, em qualquer sentido que seja: há autenticidade nesta paixão por desfrutar algumas das coisas mais belas que o homem ousou produzir ao longo dos séculos.
Max e os demônios, talvez um romance de ensaios que ensaia um processo desmistificador, me leva a algumas percepções do filme Verdades e mentiras de Orson Welles (1974), do americano Welles,, em que o grande mago da ilusão cinematográfica amargava sua visão da falsificação e da questão da autoria na arte, desmontando a ingenuidade de percepções do espectador. E também a uma história que se passou em Porto Alegre nos anos 80 e foi contada por Fatimarlei Lunardelli, em seu livro Quando éramos jovens (2000), a partir do relato de Marco Antonio Bezerra Campos: Renato Pedroso Júnior, um jovem santista bisbilhotando no sul do país, uma das cabeças mais brilhantes da comunidade cinematográfica gaúcha na época, escreveu para a revista Moviola um texto sobre um filme que nunca existiu, assim era uma falsa crítica ou uma crítica falsificada; quando Maria Lúcia Froes, uma das editoras da revista, descobriu a fraude já publicada, numa daquelas reuniões secretas da direção da publicação e do Clube de Cinema de Porto Alegre, ela queria matar Renato. Max e os demônios envereda um pouco por estes liames percorridos pelas ações antigas de Welles e Renato: numa obra de arte, qual o sentido do verdadeiro? Gilberto, numa das frases finais de seu livro, dá uma das portas: “Tenho a esperança de ter passado o amor que sinto pelos livros.” É certo.
(Eron Duarte Fagundes – eron@dvdmagazine.com.br)
Sobre o Colunista:
Eron Duarte Fagundes
Eron Duarte Fagundes é natural de Caxias do Sul, no Rio Grande do Sul, onde nasceu em 1955; mora em Porto Alegre; curte muito cinema e literatura, entre outras artes; escreveu o livro ?Uma vida nos cinemas?, publicado pela editora Movimento em 1999, e desde a década de 80 tem seus textos publicados em diversos jornais e outras publicações de cinema em Porto Alegre. E-mail: eron@dvdmagazine.com.br