Os Estereotipos da Memoria

Meu tio da America recorre a memoria filmica do proprio Resnais para se estabelecer como filme

28/08/2020 14:38 Por Eron Duarte Fagundes
Os Estereotipos da Memoria

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Sobre a imagem de um coração que pulsa ouvimos um texto   que diz: “A única razão de ser de um ser é ser.” Depois ainda seguem outras considerações sobre a necessidade do ser de se manter vivo, mantendo sua estrutura. Mas vamos ater-nos a esta primeira frase e àquele coração sanguíneo que bate na tela. É a imagem de abertura de Meu tio da América (Mon oncle d’Amérique; 1980), filme do francês Alain Resnais que revolucionou os olhares cinematográficos no começo da década de 80 do século passado.

Esta imagem de um objeto batente e vivo e de uma oração que expõe uma visão naturalista e materialista do mundo vai determinar tudo o que Meu tio da América diz e vai reiterando nos instantes seguintes de sua narrativa. O biólogo francês Henri Laborit é uma personagem-over do filme; é a partir das teorias de Laborit que Jean Gruault edificou o roteiro do filme e o próprio Laborit aparece —algumas vezes só pela voz, outras com sua imagem diante da câmara dizendo de seus conceitos— para se expor e expor suas ideias. De uma certa maneira, a reflexão de Laborit sobre o primado da inteligência instintiva (exaltando nossos faros animais: a equivalência entre o homem e os ratos de laboratório perturbou os humanistas da época) aproxima a concepção de outro estado de coisas definido por outro pensador francês, o sociólogo Edgar Morin, que em seu opúsculo Terra-pátria (1995) escreveu: “É preciso tentar viver não apenas para sobreviver, mas também para viver.” Ser por ser (Laborit), viver por viver (Morin), uma construção dramática que apesar de seu buscado intelectualismo nasce instintivamente (Resnais).

Entre várias coisas, Laborit observa que “o ser vivo é uma memória que age”. No início de Meu tio da América o espectador é bombardeado por informações excessivas, tanto vindas do cientista Laborit quanto sobre as origens das três personagens centrais (ficção) que procurarão exemplificar as teses do homem de ciências. Aturdido no início, o observador logo é tomado em sua intimidade pela mestria com que Resnais transforma o complexo em algo de mais fácil assimilação pelo público do que, por exemplo, Duas ou três coisas que eu sei dela (1967), do francês Jean-Luc Godard, ou O poder dos  sentimentos (1983), do alemão Alexander Kluge, dois outros filmes que aplicam com idêntica profundidade o universo das ideias a criaturas e situações inventadas. As falas de Laborit, abundantes no começo, se tornam rarefeitas depois, dando lugar às figuras de Jean, Janine e René; estes seres, “memórias que agem”, são captados algumas vezes em pedaços de infância, a memória de infância age neles quando adultos. Depois Resnais os liga a estereótipos cinematográficos, vinculando-os com as  estrelas do cinema do passado, como Jean Gabin, Jean Marais e Danielle Darrieux, alternando as ações das personagens de Meu tio da América com excertos  de filmes antigos dos astros. Assim, o universo de estrelas, analisado por Edgar Morin em As estrelas; mito e sedução no cinema (1972), é erigido cinematograficamente por Resnais, e em Morin lemos um depoimento do próprio Gabin que diz que “as pessoas dizem que sou o mesmo na vida real e nos meus filmes, e por isso me amam”. Assim, se Jean (que sofre de cólicas renais), Janine (que é amante de Jean, um homem casado) e René (que tem úlceras) são memórias que agem, o próprio filme Meu tio da América é, em relação ao cinema como um todo, uma memória que age. Além das referências cinematográficas acima aludidas e que aparecem por necessidade de identificar os estereótipos de memória de Jean, Janine e René, Meu tio da América recorre à memória fílmica do próprio Resnais para se estabelecer como filme. Quando Jean se debulha em dor com a pedra renal o infernizando, ele diz à sua amante “Depressa! Depressa!”, assim como fazia Jean Marais em determinada cena de A bela e a fera (1946), do francês Jean Cocteau. A cena da caçada parece extraída duma sequência de A regra do jogo (1939), do francês Jean Renoir. E o travelling lateral final por cenários urbanos semidestruídos de Meu tio da América é uma recapitulação do fechamento de O eclipse (1961), do italiano Michelangelo Antonioni. Ou seja: Meu tio da América, uma memória cinematográfica que age.

O próprio título do filme, “meu tio da América”, é outro estereótipo de memória das pessoas. Em três situações distintas, e cada um por sua vez e uma única vez cada um, Jean, Janine e René aludem à figura do tio da América, aquele tio que saiu da França para enriquecer na América e deve voltar para resolver os problemas de todo o mundo, assim como o tio português da protagonista de A brasileira de Prazins (1882), romance português de Camilo Castelo Branco, o tio deste romance camiliano é um tipo que vai para o Brasil em busca de fortuna e passa a mandar dinheiro para a família. Um tio americano, uma figura mítica, como o tio brasileiro-português de Camilo. Um filme cerebral, Meu tio da América, construído sobre o primado dos instintos.

(Eron Duarte Fagundes – eron@dvdmagazine.com.br)

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Sobre o Colunista:

Eron Duarte Fagundes

Eron Duarte Fagundes

Eron Duarte Fagundes é natural de Caxias do Sul, no Rio Grande do Sul, onde nasceu em 1955; mora em Porto Alegre; curte muito cinema e literatura, entre outras artes; escreveu o livro “Uma vida nos cinemas”, publicado pela editora Movimento em 1999, e desde a década de 80 tem seus textos publicados em diversos jornais e outras publicações de cinema em Porto Alegre. E-mail: eron@dvdmagazine.com.br

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