A Vida Incompativel
Eliza Capai faz de Incompativel com a Vida uma meditacao com outras incompatibilidades de viver
Eliza Capai, diretora de cinema, documentarista, engravida durante a pandemia do coronavírus. Impossibilitada de fazer o que nasceu para fazer, filmar as histórias dos outros com seu olho cinematográfico, Eliza volta a câmara para sua própria gravidez: para sua barriga que cresce. Surgem os primeiros planos de acompanhamento da gestação da cineasta, filmada como quem não quer nada, só uma maneira de exercitar seu hábito de filmar, para não perder o pique, e logo um fato impõe uma virada na aparente gratuidade deste exercício: o feto de Eliza é diagnosticado com má formação, ou morrerá no ventre ou terá uma precária vida breve depois de nascer. Eliza, apesar do impacto emocional, não recua: filma sua própria dor diante do episódio genético; Eliza filma sua angústia e seu corpo nu convulso. Eliza também amplia-se: vai atrás de outras mulheres brasileiras que passaram por traumas semelhantes, entrevista-as como uma documentarista mas ao mesmo tempo se põe como uma entrevistada de sua própria câmara ou de outra entrevistada-personagem que questiona Eliza sobre os motivos que separaram a cineasta e seu companheiro João Pina pouco depois do luto pelo bebê condenado a não viver, ali crescendo no ventre de Eliza, até o aborto, que se realizaria em Portugal, onde ela estava e onde neste caso tal aborto é legal (diversamente do que ocorre no Brasil).
Incompatível com a vida (2023) é um documentário que nasceu de toda esta confluência entre as filmagens iniciais leves da gravidez de Eliza e do encontro com sua própria dor de ter um feto sem futuro e com outras personagens que se assemelham a ela nesta experiência dolorosa. Eliza, como diretora, é crua como poucas vezes um diretor pôde ser, esteticamente. Incompatível com a vida é uma discussão cinematográfica, social e ética em torno de si mesmo. Uma discussão que a diretora sabe deixar aberta. Em vários momentos a crueza da filmagem se questiona em seus liames de contemplar este horror que há entre a vida e a morte. Que filme é este que se está vendo, pode pensar a cada cena o espectador? Diz a diretora numa entrevista na internet: “É claro que, depois, foi um longo processo para entender se eu deveria fazer um filme, se existia um filme, se o material era para minha terapia ou serviria a outras pessoas.” Filmar para exercitar. No caso de Eliza: filmar sua catarse. Sem aspirar a um filme. Rodrigo John, a propósito de Mirante (2019), também um documentário nos limites, se perguntou: há um filme neste material, em que momento o filme começou a existir? Em Incompatível com a vida o filme começa a existir no momento em que surge o cinema como uma inserção na vida: sua estética está tanto no cinema quanto na vida.
Mulher de cinema essencialmente, apanhada enfim no turbilhão da vida, Eliza olha o material que filmou e se põe a pensar cinematograficamente. “Depois de me separar, eu me isolei em uma casinha no meio da montanha e comecei a assistir. Foi uma coisa meio estranha me ver na vida real, me ver em sofrimento, mas fui assistindo e organizando um corte zero, com a intenção de entender se aquele material tinha densidade cinematográfica ou era uma registro pessoal.” Preocupada com a densidade cinematográfica do que filmou, Eliza faz de Incompatível com a vida uma meditação com outras incompatibilidades de viver, que é a imposição de viver o não-viver a muitas mulheres, com o cinismo social de nosso tempo.
(Eron Duarte Fagundes – eron@dvdmagazine.com.br)
Sobre o Colunista:
Eron Duarte Fagundes
Eron Duarte Fagundes é natural de Caxias do Sul, no Rio Grande do Sul, onde nasceu em 1955; mora em Porto Alegre; curte muito cinema e literatura, entre outras artes; escreveu o livro Uma vida nos cinemas, publicado pela editora Movimento em 1999, e desde a década de 80 tem seus textos publicados em diversos jornais e outras publicações de cinema em Porto Alegre. E-mail: eron@dvdmagazine.com.br