As Mutacoes de Corisco Moura
Neste romance Corisco Moura topa um novo caminho: um novo despojamento
O ficcionista Corisco Moura é um inquieto. A correnteza (2023) é sua terceira obra de ficção. E, ainda que conserve as raízes estéticas da essência de sua literatura, aqueles elementos que identificam o indivíduo como escritor, dá uma guinada forte relativamente a seus trabalhos anteriores. A última aldeia (2017), uma novela, era um exercício narrativo que partia duma absoluta sofisticação da linguagem, o que surpreendia o leitor que se habituou a ver na literatura brasileira de hoje a trivialidade do estilo. Dois levados numa jangada (2022), um romance, equilibra-se entre uma depuração clássica e a naturalidade contemporânea. A correnteza, novamente um romance, despoja o texto de Moura de todos os excessos, atingindo um outro tipo de naturalidade. Demais, em A correnteza, os aspectos interiores das personagens são exacerbados e se afastam bastante daquele jeito de anotação social e exterior que dominava em bom espaço os livros precedentes.
Circulando por vozes narrativas que se bifurcam, utilizando a espaços o narrar indireto, como o diário que dá voz em primeira pessoa a um homem sem memória, A correnteza busca a complexidade das situações humanas. Ambientado numa espécie de sanatório, o relato divaga entre as reconstituições de memórias —recriadas a custo? inventadas sem perceber?— da personagem ali internada. “Os segundos custavam a passar.” Perdido no tempo, o homem não pode senão evocar. “Tão logo deixou o diário, o calafrio desceu pelo seu corpo. Fechou os olhos, rejeitando pensar no assunto. Era preciso descansar.” Mas a estranheza em torno insta em tirá-lo do sossego. “Sei apenas de uma coisa: nesses quartos, habita a fauna mais surpreendente.”
Nas relações entrevistas no passado, Moura sabe captar —entre a precisão e a sensibilidade— as mágoas deixadas nas bordas das lembranças. “—Não se trata de vingança, Maria Moura, mas, como disse, de uma porta fechada. Você voltara para um casamento desconjuntado, e eu para a minha sina triste. A vida pede apenas que reconheçamos. O nosso tempo passou. Adeus.” Em A correnteza as vagas da memória surgem como relâmpagos que iluminam certos trechos do cotidiano da personagem. É diferente da desmemoria construída —radicalmente— por Juremir Machado da Silva em Memória no esquecimento (2021), um mergulho numa mente com Alzheimer. Em A correnteza o curso d’água é trazido para a superfície, mais próximo de Émile Zola que de Fiódor Dostoievski, embora sejam parâmetros que nem caberiam bem aqui entre Juremir e Moura; é somente uma aproximação na construção psíquica das personagens, ressalvadas as transformações romanescas profundas nestes últimos dois séculos. “Não imaginava o que o destino faria da minha história, mas às custas de repetir-se, a memória recrudescera tornando-se quase viva. Por essa razão resolvi registrá-la no papel”. Uma chave: quase viva. Neste romance Moura topa um novo caminho: um novo despojamento. Como se trata dum espírito de ficcionista inquieto, não se pode apostar facilmente o que suas obras futuras apresentarão para os leitores de Corisco Moura, um autêntico viajante das letras.
(Eron Duarte Fagundes – eron@dvdmagazine.com.br)
Sobre o Colunista:
Eron Duarte Fagundes
Eron Duarte Fagundes é natural de Caxias do Sul, no Rio Grande do Sul, onde nasceu em 1955; mora em Porto Alegre; curte muito cinema e literatura, entre outras artes; escreveu o livro ?Uma vida nos cinemas?, publicado pela editora Movimento em 1999, e desde a década de 80 tem seus textos publicados em diversos jornais e outras publicações de cinema em Porto Alegre. E-mail: eron@dvdmagazine.com.br