As Mutacoes de Renoir
Baseado num romance de Rumer Godden, O rio sagrado afasta-se e todavia refere-se constantemente ao realismo de filmar de Renoir
Entre os filmes exibidos num ciclo de obras de cabeceira do crítico e realizador francês FrançoisTruffaut, está O rio sagrado (The river; 1951), rodado na Índia para produtores americanos pelo maior de todos os cineastas franceses, Jean Renoir. Considerado pelo diretor norte-americano Martin Scosese um dos mais belos filmes do mundo, O rio sagrado é um ponto de transição —ponto ou ponte— dentro do périplo fílmico do cineasta de Boudu salvo das águas (1932) e Toni (1934), duas obras-primas que edificaram o olhar da objetividade cinematográfica em face de poética narrativa. Baseado num romance de Rumer Godden, O rio sagrado afasta-se e todavia refere-se constantemente ao realismo de filmar de Renoir; é uma alegoria transparente, onde Renoir está a um passo da intimidade com personagens que lhe são distantes mas nunca adota esta intimidade como fazia claramente em seus filmes franceses anteriores.
Esta transição, imponderável e difícil, é bem definida pela argúcia do próprio Renoir ao aludir a seu filme: “Nessa época a grande ideia dos produtores de Hollywood era a de me fazer realizar o mesmo gênero de filmes que já fazia na Europa. Fiquei lisonjeado por saber que eles gostavam de meus filmes, mas eu era um ser novo, ansioso em expressar na minha obra tudo o que me tornara. Havia, assim, um mal-entendido total.” Isto lembra o que disse o italiano Federico Fellini dos produtores americanos: queriam que ele refilmasse seus sucessos italianos e, como Fellini estava sempre em busca de renovação, resistiu às cantadas hollywoodianas, nunca mudou de casa. Com Renoir deu-se que a Segunda Guerra Mundial o obrigou a retirar-se da França para a América. O rio sagrado é uma destas tentativas de adaptar seu ego cinematográfico às obrigações com os produtores. Pode-se dizer que Renoir se sai com alta dignidade: O rio sagrado é o poema indiano de Renoir, um festival de imagens elaboradíssimas, diálogos tão cinematograficamente precisos quanto sempre e aquela narrativa-over, com voz feminina (a protagonista), que nunca desmancha a fluência visual em que Renoir é mestre insuperável.
Uma das sequências fundamentais deste filme —e fundamental da própria história do cinema— é aquela em que uma personagem conta a um grupo uma história antiga, como em conto arcaico e simbólico, em que criaturas da atualidade narrativa se convertem em seres da contemporaneidade do filme, a Índia do rio Ganges nos anos 40— é uma espécie de filme criado pela cabeça de uma personagem, as palavras da personagem desenhadas pela câmara magistral de Renoir, uma simbiose entre o mágico e o documental que é a essência mesmo do cinema de Renoir exacerbado neste instante de transição.
E, como aduziu Truffaut, os sentimentos pessoais é que informam a estrutura em que se armam os filmes de Renoir, e assim O rio sagrado expõe o sentimento da consciência humanista de Renoir dentro da inconsciência geral em que esta consciência se manifesta; mesmo sem os instrumentos de informação hindus, foi possível erguer uma aproximação a este difícil universo que Godden deitou diante de Renoir. Entre as curiosidades históricas de O rio sagrado, é a participação do indiano Satyajit Ray como assistente de direção (ele na verdade ajudou Renoir a topar locações); deste encontro com Renoir, Ray passou a interessar-se por cinema e veio a ser o mais estimado dos cineastas de seu país.
(Eron Duarte Fagundes – eron@dvdmagazine.com.br)
Sobre o Colunista:
Eron Duarte Fagundes
Eron Duarte Fagundes é natural de Caxias do Sul, no Rio Grande do Sul, onde nasceu em 1955; mora em Porto Alegre; curte muito cinema e literatura, entre outras artes; escreveu o livro Uma vida nos cinemas, publicado pela editora Movimento em 1999, e desde a década de 80 tem seus textos publicados em diversos jornais e outras publicações de cinema em Porto Alegre. E-mail: eron@dvdmagazine.com.br