Aniquilando as Possibilidades do Mundo
Leitor agudo da literatura francesa, Houellebecq sabe espalhar, sem acentos pedantes, alguns ensaios de natureza estetica ou filosofica em torno do cotidiano de suas personagens
O francês Michel Houellebecq é o escritor para o tédio e as demências características da sociedade do século XXI. Amado e odiado com igual violência, ele segue impossível deitando sua literatura: escreve com a respiração, frases naturais e cruas, sem temer o mal-estar de qualquer leitor. Aniquilar (Anéantir; 2022) é seu novo romance, que avança um pouco mais em sua perversidade narrativa, molhada de desesperança.
A frase de abertura ataca o vazio, direto: “Em algumas segundas-feiras de final de novembro ou início de dezembro, especialmente sendo solteiro, você tem a sensação de estar no corredor da morte. As férias de verão já acabaram há muito tempo, o Ano-Novo ainda está longe; a proximidade do nada é enorme.” Paul é uma personagem de Aniquilar; ele é amigo de um político, Bruno, tem relações dispersas e esquisita com uma mulher, Prudence, seu irmão Aurélien é também visto entre uma ex e uma atual e Aurélien virá a suicidar-se por motivos escusos, observamos as relações de Paul com sua irmã, e vamos dar no câncer final de Paul tratado compassivamente pela companheira Prudence, algo materializado no texto que encerra o livro: “—Não, meu querido. —Ela o olhava nos olhos, esboçando um sorriso, mas em seu rosto brilhavam algumas lágrimas. Para isso, precisaríamos de mentiras maravilhosas.”
Leitor agudo da literatura francesa, Houellebecq sabe espalhar, sem acentos pedantes, alguns ensaios de natureza estética ou filosófica em torno do cotidiano de suas personagens. Muitas vezes estes trechos ensaísticos se convertem numa espécie de criatividade central das próprias narrativas. Em Submissão (2015), longas tergiversações em torno da literatura de Joris-Karl Huysmans assumem o primeiro plano nas páginas; sem chegar a tanto, mas dentro de idêntico processo estrutural, o poema “Rolla”, de Alfred de Musset, com sua luxúria existencial, é dissecado pelo narrador de Houellebecq dentro da cabeça da personagem de Bruno, o político, para lançar luz sobre as vidas e os vazios das criaturas de Aniquilar, todas (Paul à frente) aniquiladas pela incapacidade de viver trazida por este nosso século. “Em lugar algum se podia ver isso com tanta clareza, diz Bruno, como em “Rolla”, um longo poema narrativo que retrata o suicídio de um rapaz de dezenove anos depois de uma noite de luxúria em companhia de uma prostituta de quinze.” O desespero do adolescente de Musset ilumina o homem solteiro, o da sensação do corredor da morte, o sujeito próximo do nada cuja imagem elabora o pontapé inicial de Aniquilar. Em Musset, é Voltaire, o cínico e o ateu, quem é revestido da culpa do mal do século, o século de Musset: “Dors-tu content, Voltaire, et ton hideux sourire”. Em Houellebecq a culpa parece às vezes recair na tentação da bondade, que deve ser aniquilada.
(Eron Duarte Fagundes – eron@dvdmagazine.com.br)
Sobre o Colunista:
Eron Duarte Fagundes
Eron Duarte Fagundes é natural de Caxias do Sul, no Rio Grande do Sul, onde nasceu em 1955; mora em Porto Alegre; curte muito cinema e literatura, entre outras artes; escreveu o livro ?Uma vida nos cinemas?, publicado pela editora Movimento em 1999, e desde a década de 80 tem seus textos publicados em diversos jornais e outras publicações de cinema em Porto Alegre. E-mail: eron@dvdmagazine.com.br