O Lado Perverso do Sonho Americano num Melodrama de Extremo Refinamento
Era uma vez em Nova Iorque trata do sonho americano e as possibilidades de sua realização pelos indivíduos
O crescimento do cinema do americano James Gray é um dado apaixonante para quem curte cinema. Era uma vez em Nova Iorque (The immigrant; 2013) adota uma paixão anacrônica para quem vê cinema há muito tempo, nos anos 70 (década em que se valorizava o rigor estético e sociológico em que imerge, nostalgicamente, a realização de Gray) a recepção crítica e de público ao filme seria provavelmente outra; nos tempos atuais, movidos por explosões diversas e melodramas mais rasteiros, as sutilezas operísticas e emocionais perpetradas pelo realizador passam incompreendidas o mais das vezes. Arriscando um pouco, pode-se dizer que o cinema de seduções cênicas feito pelo italiano Luchino Visconti na década de 50 do século passado é a raiz narrativa de Era uma vez em Nova Iorque; é uma percepção um tanto problemática porque Gray se distancia de seu mestre Visconti ao verter-se num ente narrador profundamente americano em sua visão das relações humanas; porém as formas básicas dos conflitos entre homens e mulheres remetem àquilo que a memória do observador acusa em Sedução da carne (1954), belo, elegante, altíssimo melodrama de época que é um dos cumes da arte de Visconti.
No entanto, como os melhores filmes americanos dos anos 70, Era uma vez em Nova Iorque trata do sonho americano e as possibilidades de sua realização pelos indivíduos. Aqui o sonho americano é mais estranho e difícil porque o indivíduo que o deseja é estrangeiro. No começo da história duas jovens imigrantes polonesas estão desembarcando de um navio num porto de Nova Iorque, nos primórdios dos anos 20: é o sonho difuso de ganhar a América o que elas vislumbram, ainda nebulosamente, mas com a inevitável esperança da juventude. Uma destas jovens é retirada pela polícia da imigração, sob suspeita de tuberculose, para que fique num hospital. A outra, desesperada diante da separação da irmã, lança-se à selva americana. Nesta selva topa um homem que a leva a prostituir-se para sobreviver; nos descaminhos encontra outro homem que lhe parece mais bondoso para que por ele ela venha a salvar-se. Com o correr das cenas Gray complexifica estas relações entre os dois homens e a mulher, como bom discípulo de Visconti, mostrando as sinuosidades e as ambiguidades entre as relações de amor e humilhação que se vão delineando naquele meio sórdido onde as personagens nunca são o que poderiam ser.
Era uma vez em Nova Iorque é o grande cinema clássico em estado de ebulição revolucionária. Se em seus trabalhos anteriores, mesmo em Amantes (2008), Gray ainda namorava um jeito de filmar contemporâneo do século XXI, agora, para mergulhar no lado perverso das manifestações mais antigas do sonho americano, o cineasta prefere contar com um refinamento de intenções e formas bastante inusitado para os termos duma produção americana naturalmente vinculada aos compromissos comerciais do cinema.
Na sessão a que fui uma garota revelou ter chorado diante do drama da protagonista. Era a encenação operística que vemos em cena lá pelas tantas? Era o retrato das injustiças do mundo que tocava esta garota? De qualquer maneira, este choro da espectadora diante de um filme como Era uma vez em Nova Iorque (cuja emoção é mais secreta e menos epidérmica que aquela de Bem-vindo a Nova Iorque, 2014, de Abel Ferrara) é uma esperança. A esperança de que haja alguns poucos que saibam ver e sentir o cinema.
(Eron Duarte Fagundes – eron@dvdmagazine.com.br)
Sobre o Colunista:
Eron Duarte Fagundes
Eron Duarte Fagundes é natural de Caxias do Sul, no Rio Grande do Sul, onde nasceu em 1955; mora em Porto Alegre; curte muito cinema e literatura, entre outras artes; escreveu o livro Uma vida nos cinemas, publicado pela editora Movimento em 1999, e desde a década de 80 tem seus textos publicados em diversos jornais e outras publicações de cinema em Porto Alegre. E-mail: eron@dvdmagazine.com.br