A Ressurreicao de um Filme
Certamente Ramis tenta fazer de Feitico do Tempo uma destas licoes de vida em que o cinema americano o faz decada apos decada com maestria
Alguns filmes passam meio batidos em sua época e são reavaliados décadas depois, um pouco pelas novas gerações, mas ainda pelos velhos espectadores que transformaram suas cabeças. Alguns filmes podem ter alguns avanços formais ou temáticos incompreendidos em seu tempo, certo. Mas há o caso em que a atmosfera de certos filmes, em seu tempo histórico, não parece diferenciar-se do ramerrão produzido e, tempos depois, uma nova época, conceitos alterados, situação social diversa, o espírito de sua narrativa se acopla àquilo que os novos espectadores vivenciam. Tudo pode ser então uma questão de adaptação do filme à sua realidade social. O mais das vezes estas relações são um jogo dialético complexo e quase invisível.
Feitiço do tempo (Groundhog day; 1993), de Harold Ramis, naquele começo da década de 90, apareceu como um entretenimento interessante mas nada diferente do que Hollywood vinha produzindo, às vezes à margem dos grandes sistemas, pelas mãos de John Landis, John Hughes ou mesmo Ivan Reitman. Virado o século, os novos tempos, em sua revisão, passaram a tratar o filme de Ramis como um objeto de culto. Os aspectos distópicos do roteiro de Ramis e Danny Rubin se encaixavam mais aos absurdos do século XXI do que àquilo que se via, aparentemente, nos anos 90. Haveria talvez elementos visionários sobre o que o comportamento humano esconde ao longo das tergiversações (ao mesmo tempo, criativas e ingênuas) que Ramis vai espalhando nas cenas.
É, provavelmente, o filme de Ramis mais estimado. Ele participou do roteiro de Clube dos cafajestes (1978), de John Landis. E é mais conhecido como uma das personagens centrais de Os caça-fantasmas (1984), de Ivan Reitman, do qual também foi roteirista. Seu Feitiço do tempo deve permanecer como um exemplar de seu talento narrativo, cuja simbologia nos tempos que vão parecem um espelho perfeito.
Em alguma instância, o filme não deixa de ser uma fantasia mais ou menos fácil de entretenimento, feita com as armas sedutoras do cinema americano. Certamente Ramis tenta fazer de Feitiço do tempo uma destas lições de vida em que o cinema americano é pródigo década após década, desde o engenho clássico de Frank Capra, a quem, parece, Ramis de alguma forma presta seu tributo. Desde a construção de personagens e situações. Os contrastes entre as duas personalidades, em dois momentos distintos, de Phil, o meteorologista azedo e irritadiço com a rotina, num certo instante vendo seu tempo paralisar-se num único dia, são contrastes expostos com artifícios necessariamente incômodos: o Phil áspero que passa a ser depois um humano quase piegas não convence como evolução da personagem, falta autenticidade ou veracidade, se formos rigorosos. Ainda assim, Feitiço do tempo é uma deliciosa comédia. Graças, especialmente, à desenvoltura cênica de Bill Murray: bem secundado por Andie MacDowell e Chris Elliott.
Ressuscitado Feitiço do tempo, cabe a cada espectador dar sua experiência de contato com este universo cinematográfico de um outro tempo que desembarca, como uma nave extraterrestre, entre nós.
(Eron Duarte Fagundes – eron@dvdmagazine.com.br)
Sobre o Colunista:
Eron Duarte Fagundes
Eron Duarte Fagundes é natural de Caxias do Sul, no Rio Grande do Sul, onde nasceu em 1955; mora em Porto Alegre; curte muito cinema e literatura, entre outras artes; escreveu o livro Uma vida nos cinemas, publicado pela editora Movimento em 1999, e desde a década de 80 tem seus textos publicados em diversos jornais e outras publicações de cinema em Porto Alegre. E-mail: eron@dvdmagazine.com.br