Absoluta Desglamurizacao de Filmar
Pedagio tem seus inc?modos por ferir, desde sua imagem inicial, as habituais facilidades de olhar o cinema


“Eu gosto de palavra, da nossa língua, e acho fascinantes as maneiras diferentes que as pessoas têm de se comunicar. Gosto muito dessa observação, como por exemplo em Joanópolis (no interior de SP), pesquisando para Carvão. Não é apenas um laboratório, pessoalmente me dá prazer, é praticamente um hobby, gosto de aprender as gírias, acabo usando. Meus filmes têm bastante diálogos, amo escrever diálogos, pensar como aquela pessoa falaria, os sentimentos que expressa pelas palavras, que às vezes pode ser uma só.” (Carolina Markowicz em entrevista ao jornalista Ticiano Osório).
A narrativa começa de maneira seca: uma secura brutal. Uma mulher se levanta da cama. Na cama está um homem, que dorme. Pouco vemos dos corpos das personagens, senão lampejos de seus nus. Os enquadramentos são precários, disformes. A mulher se dirige ao banheiro: Senta-se no vaso; ouvimos o barulho de sua urina. A câmara mostra quando ela seca sua genitália com o papel: sem mostrar a genitália, pois ela está sentada no vaso. Ações comuns filmadas: como se o cinema buscasse o lado mais desglamurizado e precário de todos os seres humanos. É assim Pedágio (2023), o filme dirigido pela brasileira Carolina Markowicz, paulista de nascimento: verga sua estrutura estética ao peso de fatos tão naturais quanto com um sentido obscuramente vazio. Ambientado em Cubatão, interior do estado de São Paulo, surpreende o espectador pelas energias absolutamente inusitadas que extrai do cotidiano de suas personagens, cujos sonhos de viver parecem mínimos e no entanto únicos.
No centro do filme, está Suellen, a mulher que no início do filme oferece ao observador aquele acordar trivial, um homem em sua cama, urinar, limpar-se. Um certo cinema europeu dos anos 70 adaptado a solo brasileiro? Ou o brasileirismo cinematográfico em grau máximo? Na pele de Suellen, a atriz brasiliense Maeve Jinkings (cuja natureza cênica bastante particular o assistente pôde desfrutar nos filmes do pernambucano Kleber Mendonça Filho, ela como mãe de duas crianças em O som ao redor, 2015, ela como a filha ranzinza de Sônia Braga em Aquarius, 2016) carrega muito do ritmo narrativo edificado pela cineasta: ela é uma personagem complexa, a mulher que se envolve com um homem que vive de crimes, a colega de serviço duma mulher casada beata adúltera numa praça de pedágios, a mãe dum jovem negro homossexual. A criação conjunta de Carolina e sua intérprete Maeve põe em cena uma das mais fortes personagens do cinema brasileiro.
Carolina, com distanciamento, ainda propõe seu olhar quase documental para uma questão em que o cinema brasileiro recente (este da era bolsonarista, que, ao que parece, não começou nem vai acabar com Jair Bolsonaro) tem às vezes mergulhado. A influência das seitas religiosas no comportamento social. Suellen, tendo um filho homossexual, se alia com sua amiga tão beata quanto cheia de tensões sexuais (o roteiro alinha suas escapadas com seres topados na praça de pedágio, escapadas que segundo ela não invalidam sua confiança em Deus e no casamento) para encaminhar o adolescente a uma “nova” cura gay trazida pelo culto.
Pedágio tem seus incômodos por ferir, desde sua imagem inicial, as habituais facilidades de olhar o cinema. Uma obra necessária: como filme e como reflexão (desdramática mesmo) social.
(Eron Duarte Fagundes – eron@dvdmagazine.com.br)


Sobre o Colunista:
Eron Duarte Fagundes
Eron Duarte Fagundes é natural de Caxias do Sul, no Rio Grande do Sul, onde nasceu em 1955; mora em Porto Alegre; curte muito cinema e literatura, entre outras artes; escreveu o livro Uma vida nos cinemas, publicado pela editora Movimento em 1999, e desde a década de 80 tem seus textos publicados em diversos jornais e outras publicações de cinema em Porto Alegre. E-mail: eron@dvdmagazine.com.br

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