Minha Mineiridade

No fundo, sou um gaucho que pode encontrar-se em varias culturas de seu pais

07/09/2025 02:29 Por Eron Duarte Fagundes
Minha Mineiridade

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Foi minha quarta viagem a Minas Gerais. A primeira se deu em fevereiro de 1978, eu tinha vinte e dois anos e era minha primeira aventura para fora das fronteiras do Rio Grande do Sul. Eu estava no Rio, ainda e sempre minha cidade brasileira favorita, por sua geografia e por sua vida cultural, e pretendia chegar a Salvador, na Bahia, curioso de seu mundo de estranhezas para um gaúcho. Na rodoviária do Rio (sim: na época, eu viajava só de ônibus, os aeroportos eram proibitivos para a classe média) me disseram que para Salvador só dali a quinze dias, puxa, pensei, não daria, em quinze dias eu teria de estar em Porto Alegre, por compromissos variados, então me aconselharam a ir a Belo Horizonte, de lá seria mais fácil conseguir passagem para a capital baiana. Foi o que fiz: manhã cedo cheguei à capital mineira, passei o dia na cidade, circulei por lugares de que já não me lembro, vi o filme “Tenda dos milagres”, de Nelson Pereira dos Santos, uma coincidente prévia de Salvador, da Bahia, de seu misticismo próprio; de tardezinha, embarquei em Belo Horizonte num ônibus para Salvador. Minha segunda visita a Minas se deu em 2011; convidado pelo cineasta mineiro Ernane Alves para ver a pré-estreia de seu filme “Palo”, no Sesc Paladium, ali estive por uns três dias. A terceira foi em julho de 2016, minha primeira viagem após minha saída da CEEE, empresa em que trabalhei por 41 anos; eu e minha mulher andamos muito por Belo Horizonte e também subimos a serra em direção a Ouro Preto, lembro minhas caminhas pela praça da Liberdade, no centro, uma ida à cidadezinha de Sabará, passeios na Pampulha com minha sobrinha Natália e seu marido Henrique, que então moravam na capital mineira.

Agora, neste julho de 2025, uma quarta passagem, com minha esposa e meu filho Gustavo, rever amigos, como Ernane Alves, cineasta, escritor, artista plástico, agora morando em Pedro Leopoldo, voltando à sua cidade natal depois de dezoito anos habitando os grandes centros, como Belo Horizonte e Buenos Aires, um café da tarde com Ernane agora na cidade que é berço do jogador de futebol Dirceu Lopes e do líder religioso Chico Xavier. Outro amigo, Roosevelt e sua esposa Cristiane, e sua filha Laura, outro café, num sábado à tarde, num bairro belo-horizontino, uma conversa e outra, sobre família, regionalidades, gostos de cada um, Roosevelt, religioso, me pergunta se algum dia li a Bíblia, lhe disse que a li na juventude, ele alega que não entende a Bíblia, é uma linguagem difícil, eu lhe disse que sim, as alegorias bíblicas são antigas e as traduções costumam ser num português arcaico, no vocabulário e na sintaxe, esta tergiversação um dos tópicos de nossa conversa. Naturalmente: dei as caminhadas na praça da Liberdade, geralmente matinais, em algumas destas pernadas topamos com uma personagem constante, uma jovem, passo célere, um dos braços quase imóvel, o outro balançando-se ao ritmo de seus passos, máscara para se proteger dos vírus das quadras perigosas em que vivemos, em muitos aspectos identifiquei-me com ela, nesta obsessão de circular, navegar é preciso, dizia o antigo navegador português Gil Eanes, recuperado por Fernando Pessoa, a navegação pode ser feita com os próprios pés, caminhar. De caminhadas, em dois domingos, as fiz no Parque Municipal rente da Feira Hippie, onde a Marilene se divertiu; esta feira quem a apresentou a nós foi minha sobrinha Natalia em 2016, que na época morava num edifício num dos lados da praça da Liberdade.

Houve, naturalmente, a ida a Sabará, a 25 km de Belo Horizonte. Damos com o Museu do Outro fechado e interditado, pensei em Carlos Drummond de Andrade e numa interpretação de seus versos num poema de espantos, “Minas não há mais”. Em compensação, após atravessarmos,  dirigindo um carro por seis quilômetros numa estrada esburacada, pedregosa e empoeirada, chegamos ao pé da igreja da Soledade, com vistas para Sabará e adjacências, e o encontro com um casal de aldeões simpáticos que cuidava da capela a serviço dum “patrão” (assim o chamavam).

Ouro Preto, ponto de itinerário, outra decepção de fechamento, o Museu da Inconfidência. Além de um trânsito carregado. Valeram as evocações do Palácio d’Ouro, onde penetramos a primeira vez no interior duma mina.

Das exposições (todas boas) vistas em Belo Horizonte, uma se destaca, a de Clara Nunes, no Museu da Moda, uma indicação de Laura, filha de Roosevelt. Ali se puderam constatar as relações das canções de Clara e sua persona estética com as vestes, com a moda como expressão artística. Clara é mineira de Caetanópolis; na minha juventude, quando eu a ouvia de ouvidos hipnotizados, eu pensava que ela era baiana, por uma qualquer coisa de seu jeito de cantar; depois, como seu sucesso vinha a partir do Rio, a tive por carioca; equívocos absolutos: nada mais mineiro do que a arte de Clara Nunes, que se alinha com Guimarães Rosa e Carlos Drummond de Andrade. E ainda, de tudo, sobrou tempo para uma ida ao cinema, ver “Uma bela vida”, o mais recente filme do greco-francês Constantin Costa-Gavras, e conhecer o espaço cinematográfico do Centro Cultural Unimed, no centro de Belo Horizonte, o mesmo tipo de público que vemos nas salas assemelhadas em Porto Alegre, uma plateia compenetrada, atenta, intelectual, muitas senhoras da elite cultural mineira.

Eis então, nesta breve exposição, minha mineiridade. No fundo, sou um gaúcho que pode encontrar-se em várias culturas de seu país. Um viajante, mais bem definido numa expressão do romancista Erico Verissimo, “desde pequeno, eu fui possuído pelo demônio das viagens”.

 

(Eron Duarte Fagundes – eron@dvdmagazine.com.br)

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Sobre o Colunista:

Eron Duarte Fagundes

Eron Duarte Fagundes

Eron Duarte Fagundes é natural de Caxias do Sul, no Rio Grande do Sul, onde nasceu em 1955; mora em Porto Alegre; curte muito cinema e literatura, entre outras artes; escreveu o livro ?Uma vida nos cinemas?, publicado pela editora Movimento em 1999, e desde a década de 80 tem seus textos publicados em diversos jornais e outras publicações de cinema em Porto Alegre. E-mail: eron@dvdmagazine.com.br

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