Um dos Mais Austeros Filmes

A Religiosa, de Jacques Rivette, é um permanente controle sobre seu lado estético.

03/10/2014 09:41 Por Eron Duarte Fagundes
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A religiosa (La religieuse; 1966) é o segundo filme do francês Jacques Rivette. O primeiro, Paris nos pertence (1961), era um rascunho ambicioso das inquietações estéticas do cinema francês entre o fim dos anos 50 e o início dos anos 60. O modelo tateante e indeciso experimentado cinco anos antes vai topar, em A religiosa, uma segurança de intenções e formas cuja raiz talvez esteja em sua origem literária, o universo moral e religioso concebido em 1760 (dois séculos antes de Rivette) pelo escritor francês Denis Diderot. Pode-se dizer que, como ponto de partida, Rivette se encontrou em Diderot: as preocupações de uma  encenação transcendente porém austera saem notavelmente da pena de Diderot para a ação fílmica de Rivette, cruzando-se aí uma inspiração cinematográfica (os planos de misticismo despojado do também francês Robert Bresson) e uma vertente que em nossos dias agiu inclusive sobre alguns filmes de claustro do português Manoel de Oliveira (especialmente A carta, de 1999). Assim, A religiosa marcou o impulso inicial do cinema de Rivette, dando-lhe uma forma criativa segura (sem as barbas desparelhas de seu trabalho de estreia), mas não lhe determinou os rumos, que nos anos seguintes seria bem menos clássico, mais rebuscado e experimental. Mas não se confunda o classicismo exasperante e perturbador de A religiosa com as orelhas murchas daquele clássico mofado que o crítico Rivette e seus parceiros tanto criticaram nas páginas do Cahiers du Cinéma; a desglamurização das cores e os cenários desprovidos dos grandes adereços de época jogam A religiosa muito mais nos braços do dinamarquês Carl Theodor Dreyer do que nas pegadas do cinema grandioso de Anthony Mann ou King Vidor. A religiosa é um permanente controle sobre seu lado estético.

Mas quero pensar em A religiosa também por um outro lado. Uma encenação não-realista de dados realistas, um exercício cerebral, uma aproximação a reflexões contemporâneas (o anticlericalismo) sem uma preocupação contemporânea temática. Uma forma de expor  que a justaposição da realidade ao cinema é impossível, como Rivette escreveu num célebre artigo de 1960 em que desancava o filme Kapo (1959), do italiano Gillo Pontecorvo. Em seu texto Rivette agride ferozmente o que ele chama “maquiagem irrisória e grotesca” de um assunto incontornável, os campos de concentração. O raciocínio crítico de Rivette se obsessiona em torno do plano do suicídio da personagem de Emmanuelle Riva, no final do filme, um travelling-para-a-frente (“travelling-avant”) que incomoda os escrúpulos estéticos de Rivette, que vê ali algo assim como uma glamurização de um tema horrível, isto é, que produz horror em quem o observa. Não sei se escapa a meu francês ainda tateante alguma coisa oculta na linguagem e suas artimanhas, mas há uma observação-pista que talvez ilumine o próprio sentido do cinema que Rivette  viria a fazer. Eis: “mais si nous avons toujours détesté, par exemple, Poudovkine, De Sica, Wyler, Lizzani, et les anciens combattants d’Idhec, c’est parce que l’aboutissement logique de ce formalisme s’appelle Pontecorvo”. Uma narrativa como esta de A religiosa, que é muito mais uma recriação estética do clericalismo, é quem sabe um esforço para escapar deste caminho lógico que vai de De Sica a Pontecorvo; isto é, o resultado lógico de De Sica ou Wyler é, incrivelmente, um Pontecorvo na ponta da régua.

É muito provável que o crítico Rivette estivesse equivocado em sua visão de Kapo, é quase certo que o plano final de Kapo seja o que de mais fascinante tem este Pontecorvo menor. Rivette teme que as formas de Pontecorvo sirvam unicamente a fazer com que cada espectador se habitue dissimuladamente ao horror (“chacun s’habitue sournoisement à l’horreur’), aponta que certas coisas são impossíveis de filmar naquele plano realista de Pontecorvo; e sugere a impostura do cineasta ao filmar algo tão misterioso, com aquele travelling aparentemente realista, como o suicídio no filme de Kapo. O artigo de Rivette fez furor em sua época. Volta e meia estas questões (é possível ser real no cinema sem maquiagem ou cosméticos?) voltam diferentemente. Não interessa aqui. O que interessa é ver como estas ideias da juventude puderam assombrar a forma cinematográfica posterior de Rivette, longe e perto da realidade. Já em A religiosa, mesmo em sua encenação aparentemente realista, mas operando por símbolos de reflexão. Enfim, impedir que ressurja De Sica travestido de fantasma de Pontecorvo. Austeridade: desde o gesto da câmara.

 

(Eron Duarte Fagundes – eron@dvdmagazine.com.br)

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Sobre o Colunista:

Eron Duarte Fagundes

Eron Duarte Fagundes

Eron Duarte Fagundes é natural de Caxias do Sul, no Rio Grande do Sul, onde nasceu em 1955; mora em Porto Alegre; curte muito cinema e literatura, entre outras artes; escreveu o livro “Uma vida nos cinemas”, publicado pela editora Movimento em 1999, e desde a década de 80 tem seus textos publicados em diversos jornais e outras publicações de cinema em Porto Alegre. E-mail: eron@dvdmagazine.com.br

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