A Literatura Móvel

O que pulsa mesmo em todos os vocábulos de On the Road, de Jack Kerouac, é a Vida

24/10/2014 11:25 Por Eron Duarte Fagundes
A Literatura Móvel

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Às vezes se tem a impressão de que a literatura está morrendo porque ela não se movimenta dentro da vida. Às vezes bate à porta a ideia de que somente um “leitor literário” pode amar a literatura, o que seria o primeiro sintoma de sua doença final. A secura muito amada de Graciliano Ramos não se movimenta dentro da vida: na vida só se é seco por artifício, a vida é barroca, um monstro de formas  dilaceradas. O barroquismo intelectual de José Geraldo Vieira está num exagerado altiplano de linguagem para a maioria. O oposto deles poderia ser o barroquismo simplório e desgovernado de Jorge Amado: mas ele é superficial demais em suas tiradas poéticas. Então surge, no meio destas leituras brasileiras de autores que amo e que me ensinaram quase tudo o que sei das letras pátrias, o americano Jack Kerouac e seu romance On the road (1957), escrito praticamente como um impulso vital, algo como se o francês Marcel Proust saísse de seus salões de Haussmann para a beira do Sena com seus ciganos e negros prontos para o assalto ou como se o irlandês James Joyce esquecesse o departamento de linguagem que exacerba a vida.

Não se dirá aqui que Kerouac é superior a Graciliano ou a José Geraldo. Mas ele é mais rico contador de histórias que Amado. O essencial, porém, é que o texto voluptuoso, ingênuo, tortuoso, direto em seus detalhes mas enviesado em seus cruzamentos de frases é um texto necessário à sobrevivência da literatura como irmã da vida ou como um barco que pode singrar a vida.

Kerouac é suficientemente desconcertante em ir alinhavando personagens secundárias. As características autobiográficas de sua narrativa facilitam os modelos desta criação ativada pela memória imaginativa. Outro escritor norte-americano, Henry Miller, fazia algo parecido, transformando sua própria vida em arte. Mas o processo era diverso. Kerouac tem origens mais claras no universo rueiro, irônico do também americano Mark Twain. A isto Kerouac acrescentou a embriaguez duma determinada geração do século XX. As inserções de múltiplas criaturas ao longo de On the road vai criando um caleidoscópio narrativo vertiginoso, a que corresponde também algumas evocações de cenários e ambientes maravilhosas, como: “Era domingo. Baixou uma grande onda de calor; era um dia lindo, o sol avermelhou por volta das três da tarde.” É curiosa a forma como Kerouac capta a descontinuidade da visão na vida para dar organicidade narrativa a seu texto. Diz-se que o texto original foi rejeitado por difuso, confuso e subliterário. No texto agora final permanecem os elementos naturais de difusão, confusão e sub-arte, mas coordenados com mestria de narrador.

O que pulsa mesmo em todos os vocábulos de On the road é a Vida. Por isso a frase emblemática do texto do romance é: “ ‘Oh,  sinta só o cheiro dessas pessoas’, gritou Dean com o rosto para fora da janela, fugindo. ‘Oh! Deus! A Vida!’”. O símbolo romanesco de On the road passa por esta captação: meter a linguagem na vida, chegar à literatura móvel, sem estaticidade estética.

P.S.: Cerca de cento e oitenta páginas deste romance fabuloso eu as li durante o voo Rio-Paris em julho de 2012, umas dez horas e quarenta minutos, uma noite de insônia em que me inquietava como iria eu descobrir o Velho Mundo.

 

(Eron Duarte Fagundes – eron@dvdmagazine.com.br)

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Sobre o Colunista:

Eron Duarte Fagundes

Eron Duarte Fagundes

Eron Duarte Fagundes é natural de Caxias do Sul, no Rio Grande do Sul, onde nasceu em 1955; mora em Porto Alegre; curte muito cinema e literatura, entre outras artes; escreveu o livro ?Uma vida nos cinemas?, publicado pela editora Movimento em 1999, e desde a década de 80 tem seus textos publicados em diversos jornais e outras publicações de cinema em Porto Alegre. E-mail: eron@dvdmagazine.com.br

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