Imaginar a Realidade
O escritor Tailor Diniz revisita um dos casos historicos mais famigerados da cronica policial de Porto Alegre
O escritor Tailor Diniz revisita um dos casos históricos mais famigerados da crônica policial de Porto Alegre, em Os canibais da rua do Arvoredo (2024). O episódio original, que se passa no século XIX, em nosso primitivo universo provinciano de então, já teve a atenção do romancista Luiz Antonio de Assis Brasil, que o referiu de passagem, como relato acessório à peça principal, num de seus principais livros, Cães da província (2004). Mas foi o historiador Décio Freitas quem, com mais lucidez e engenho, iluminou esta sombra porto-alegrense que, contada ou recontada, sempre nos assombra. Ainda com todos estes antecessores ilustres, Diniz propõe uma visão original e muito contemporânea do caso de carne humana comercializada travestida em alimentos habituais de nossa mesa.
Diniz transporta a ação do século oitentista para este século XXI, onde, mais que nunca, todos os opostos participam do mesmo baile. Os nomes das personagens permanecem: José e Catarina, como seus ancestrais da centúria retrasada. Se o José antigo matava seres humanos para fazer linguiças e vendê-las, o José do livro de Diniz usa a carne humana para fazer hamburguer, exalando a contemporaneidade do gosto alimentar. Mas a Catarina atual faz a mesma coisa que sua correspondente histórica, atrai lascivamente homens para que José os mate. No entanto, a exploração da sexualidade pelo texto de Diniz é mais ousada ou explícita que os relatos novecentistas permitiam. As relações entre sexo e morte e o prazer no sofrimento se evidenciam fortemente na história contada por Diniz, que domina seu instrumento narrativo — com dotes para interessar o leitor e uma constante criatividade do verbo — com raro brilho.
O narrador exterior à ação se permuta com um narrador incrustado entre as criaturas que vivem a morbidez e paixão erótica da cena. O observador, especialmente o porto-alegrense, vê uma Porto Alegre em que a imaginação é um elemento da realidade.
“Um táxi percorre as ruas de Porto Alegre. Desce a Ramiro Barcelos e entra à direita na avenida Farrapos. Ali as casas noturnas se sucedem, a cidade ganha outra luz, outra aparência. A imagem de prédios austeros e degradados vistos durante o dia dá lugar a um show de neon, de luzes coloridas e cintilantes. Uma outra dimensão se abre, e é por esse espaço translúcido e colorizado que o táxi avança, em meio a mulheres seminuas desfilando nas calçadas à procura de clientes.” Quase como um filme, em que a narrativa é imagem feita de palavras, somos tentados a dizer nos séculos de educação cinematográfica.
Pode-se dizer que a tensão e a lubricidade criadas pela narrativa de Diniz se sai bastante melhor que aquelas propostas por David Coimbra em sua novela Canibais: paixão e morte na rua do arvoredo (2004).
(Eron Duarte Fagundes – eron@dvdmagazine.com.br)
Sobre o Colunista:
Eron Duarte Fagundes
Eron Duarte Fagundes é natural de Caxias do Sul, no Rio Grande do Sul, onde nasceu em 1955; mora em Porto Alegre; curte muito cinema e literatura, entre outras artes; escreveu o livro ?Uma vida nos cinemas?, publicado pela editora Movimento em 1999, e desde a década de 80 tem seus textos publicados em diversos jornais e outras publicações de cinema em Porto Alegre. E-mail: eron@dvdmagazine.com.br
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