Os Loucos de Todo Gnero

Semelhanas ente Machado de Assis e Anton Tchekhov: O Alienista e Enfermaria no. 6

30/10/2014 12:44 Por Eron Duarte Fagundes
Os Loucos de Todo Gênero

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Se não fosse improvável, se diria que o brasileiro Machado de Assis de O alienista (1882) influenciou o russo Anton Tchekhov de Enfermaria nº 6 (1892). Sabe-se que não ocorreu nada disto, pois o escritor brasileiro era desconhecido na Europa e na Ásia do século XIX; o que se dá então é uma estranha coincidência de argumento inicial e situações narrativas que nem o estilo característico de cada autor logra desmanchar e fazer ao leitor esquecer como se estivesse lendo duas histórias semelhantes e complementares.

Como brasileiro, o conto machadiano é uma de minhas leituras de formação. Sua reflexão irônica sobre o espaço relativo da loucura me acompanhou pela vida afora para duvidar sempre das sentenças definitivas. A loucura, assevera Machado, pode estar tanto no doente quanto no psiquiatra: vai depender sempre do ponto de vista. Num mundo em que os loucos são a maioria, os loucos é que estão com a razão; no mundo de dementes, quem não apresenta os sinais de demência é que é a anomalia. Como diz a moção de um vereador de Itaguaí, a mítica cidadezinha criada por Machado de Assis, “nada tenho que ver com a ciência; mas, se tantos homens em que supomos juízos, são reclusos por dementes, quem nos afirma que o alienado não é o alienista?”. O doutor de Itaguaí encerra-se no manicômio, como único doido, e é claro que morre, sem chegar a curar-se como desejava. Segundo boato popular identificado pelo narrador de Machado, nunca teria havido em Itaguaí outro louco além dele. O alienista segue um pouco os rompantes quixotescos de Miguel de Cervantes e a figura de Simão às vezes parece um alucinado Quixote e há até seu Sancho Pança, na personagem Crispim Soares, em torno do qual o monólogo cientificista do médico articula seu artificioso diálogo.

Enfermaria nº 6 é não menos inclemente no retrato de um médico que no contato com um asilo de loucos quer impor seu conhecimento e suas definições. O lugarejo da narrativa de Tchekhov é uma cidade interiorana não nominada pelo narrador; como em Machado, o cheiro a interior do século XIX é um dado que reforça a curiosa semelhança como se fosse influência. Se o barbeiro de O alienista define a Casa Verde, o local de internação dos loucos, como “a bastilha da razão humana”, querendo significar como um reino de trevas, ou seja, onde a razão deixou de habitar, o narrador de Enfermaria nº 6 refere o pavilhão nº 6 do hospital (onde foram despejados os doidos) como uma “bastilha do atraso e da ignorância”. Andriéi Efímitch, o médico do conto de Techekhov, tem uma elegância europeia que o descaracteriza como o grotesco brasileiro criado por Machado; mas vai para a mesma melancolia final. O interlocutor do médico em Enfermaria nº 6 é um louco: com ele o doutor tergiversa sobre especulações filosóficas, tratando de coisas como a imortalidade e recorrendo a uma frase (lugar-comum) que, lhe escapa a memória, tanto pode ser do francês Voltaire quanto do russo Dostoievski (Machado também se vale com sarcasmo de referências clássicas, como o Corão e gente como Cícero, Apuleto e Tertuliano). A diferença essencial está na lepidez de O alienista e na contemplatividade algo longínqua de Enfermaria nº 6. E a pompa e a solenidade do enterro de Simão contrasta com o discreto funeral de Andriéi, acompanhado à eternidade por somente duas pessoas (lembremos que no enterro de Brás Cubas, outra personagem de Machado, havia um número um pouco maior de gente: onze).

Antes de ler o conto de Tchekhov, li notícias críticas dele em Rumo à estação Finlândia (1940), do americano Edmund Wilson. O relato preciso e minucioso de Wilson me deu a sensação de estar revisitando O alienista. São as mesmas questões, as mesmas tragédias, as mesmas mesquinharias de personagens. Wilson capta a sutileza do texto de Tchekhov, mas ele está falando da influência da leitura tchekhoviana sobre Lênin, um dos famosos ativistas comunistas do século XIX; como leitura de formação do russo Lênin, Enfermaria nº 6 revela seu poder político. Lendo o texto de Machado e depois o de Tchekhov, descubro obras diferenciadas, apesar de profundas e estranhas identidades. Em Machado e em Tchekhov uma luz crítica que ilumina os dilemas futuros das respectivas sociedades, profeticamente: o exercício de poder e dominação que se exerce a partir da subjugação da mente do outro; tanto a Rússia pós-czarista quanto o Brasil que veio pela República afora são antecipados em suas relações sociais por Enfermaria nº6 e O alienista.

 

(Eron Duarte Fagundes – eron@dvdmagazine.com.br)

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Sobre o Colunista:

Eron Duarte Fagundes

Eron Duarte Fagundes

Eron Duarte Fagundes natural de Caxias do Sul, no Rio Grande do Sul, onde nasceu em 1955; mora em Porto Alegre; curte muito cinema e literatura, entre outras artes; escreveu o livro ?Uma vida nos cinemas?, publicado pela editora Movimento em 1999, e desde a dcada de 80 tem seus textos publicados em diversos jornais e outras publicaes de cinema em Porto Alegre. E-mail: eron@dvdmagazine.com.br

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