O Mais Denso dos Filmes

Uma estrutura cinematográfica densaarmada pelo espanhol Carlos Saura para rodar a narrativa de Elisa, Vida Minha

11/11/2014 09:43 Por Eron Duarte Fagundes
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Cuido que dificilmente haverá no mundo algum filme cuja estrutura cinematográfica seja mais densa que esta armada pelo espanhol Carlos Saura para rodar a narrativa de Elisa, vida minha (1977). Talvez o italiano Roberto Rossellini em seu antecipador Viagem à Itália (1953), talvez o alemão Alexander Kluge em sua obra-futuro O ataque do presente contra o restante do tempo (1985) possam equiparar-se na complexidade de um processo de contar histórias em imagens. Mas Elisa, vida minha permanece como um caso único de riqueza de um universo fílmico; trata-se dum trabalho que provoca o olhar multifacetado do espectador porque são muitos os tentáculos formais e temáticos que Saura exibe em seu trajeto –e isto com uma simplicidade estonteante, sem recorrer às agitações estilísticas do franco-suíço Jean-Luc Godard e ao cerebralismo enviesado do francês Alain Resnais.

Em vários filmes de Saura dos anos 60 e 70 se misturavam o passado, o presente e a imaginação. Em Cria cuervos (1976) o diretor chegou a um ponto de equilíbrio bastante transparente nestas fusões de tempo (o antigo, o atual, o imaginário); era um quebra-cabeças montado com clareza. Em Elisa, vida minha, sem perder de todo a segurança e a clareza dos procedimentos, o quebra-cabeças faz as peças se cruzarem mais anarquicamente pela narrativa, exigindo do espectador uma atenção que o lado sensorial duma projeção cinematográfica muitas vezes atrapalha.

Quando o filme de Saura pintou por aqui, em 1982, os dois maiores críticos gaúchos de então, Tuio Becker (devoto de Saura e do filme) e Luiz Carlos Merten (ácido com o Saura e com o filme), cometeram o mesmo equívoco de observação. Senão vejamos.

Numa cena em que a personagem adulta de Elisa vaga pelo corredor escuro da casa, pára diante duma porta e meio que olha como se pelo visor da câmara desse com seu passado, enxergando sua família reunida, intercalando-se o olhar de Geraldine Chaplin (Elisa e outrora mãe de Elisa) com o da garotinha Ana Torrent (Elisa menina) ultrapassando a questão da personagem para chegar ao âmago dos intérpretes (Geraldine, então mulher do cineasta, e Ana, uma descoberta impagável do cinema de Saura via Victor Erice), um trecho desta seqüência mostra o pai de Elisa (magnífica composição de Fernando Rey, ator de Luis Buñuel em Viridiana, 1961, e Tristana, 1970) sublinhando uma frase num livro onde se faz referência à necessidade do artista de cruzar as superfícies e penetrar no coração das coisas. Aí se deu o erro dos críticos aludidos: em textos da época afirmaram que foi Geraldine quem sublinhou a frase.

Fácil explicar a confusão na cabeça das pessoas. O cinema habitualmente é feito prevendo a desatenção do espectador, os detalhes não fazem muita diferença no sentido do filme. Elisa, vida minha rompe com este processo, educando a atenção do assistente.

O centro da revolução formal do cinema de Saura (que ele vinha exercitando em obras anteriores) e em Elisa, vida minha se depura a toda a prova é a capacidade de fusão de personagens dentro de uma perspectiva do tempo narrativo. Esta fusão adquire o máximo de perfeição na maneira como Elisa e seu pai são duas pessoas e uma só, na maneira como Fernando Rey ao escrever as memórias do professor se converte em algumas frases em Elisa, na maneira como Elisa vampiriza a personalidade de seu pai para no final substituir o velho mestre doente na coordenação do teatrinho de colegiais que é a antepenúltima seqüência do filme.

 (A penúltima seqüência é a descoberta do pai morto por Elisa num buraco dos isolados descampados da meseta espanhola e a última reedita imagens e texto da primeira cena do filme, o carro que entra no plano fixo da estrada poeirenta da meseta, Elisa falando de sua visita ao pai enfermo ao mesmo tempo em que vive uma das crises de seu casamento. Repor na montagem cenas já vistas em outros instantes narrativos, como este plano de paisagem e texto que inicia e conclui o filme é exasperante e coerentemente espalhado por Elisa, vida minha, num procedimento que Saura extraiu, refinando ainda mais, de Luis Buñuel em O anjo exterminador).

Outro dos pontos polêmicos dos anos 80 era saber da originalidade de Saura diante da evocação de alguns outros diretores, não somente de Luis Buñuel, mas ainda do francês Alain Resnais e do sueco Ingmar Bergman. Vistos lado a lado hoje, pode-se dizer que a complexidade temporal de Elisa, vida minha é mais aguda e profunda que aquela de O ano passado em Marienbad (1961), uma das obras-primas de Alain Resnais; o tempo de Elisa dói muito mais que as melancolias arquitetônicas de Marienbad. Também se pensou em Morangos silvestres (1958), um dos principais filmes de Bergman, a respeito do filme de Saura, especialmente por uma cena em que um casal discute dentro dum carro; na época, contando com a memória, eu articulei algumas diferenças entre a cena de Bergman e a de Saura, diferenças que agora podem ser melhor explicitadas diante da possibilidade de juntar, em dvd, as duas seqüências.

Primeiramente, a cena de Bergman é mais austera e formalmente fechada, enquanto Saura utiliza certos processos, como variação de ângulos e filmar o diálogo detrás dos vidros do carro, que caracterizam uma outra nervura; depois, uma parte da cena de Bergman se dá fora do carro; finalmente, em Bergman ela está grávida e tenta a reaproximação, enquanto ele é mais duro, intransigente, intransigência que em Saura fica com a mulher (o homem é meloso em Saura e diz pela primeira vez no filme a frase-título, abraçando desesperançado a esposa cujo coração se afasta do seu: Elisa, via minha). Enfim, discussões que eu gostaria de ver voltar à tona, pois elas me parecem mais produtivas do que quase tudo o que no cinema de hoje se discute, o mais das vezes questionamentos superficiais e moralistas sobre temas cinematográficos.

No teatrinho de colegiais do fim do filme uma garotinha que interpreta a personagem do Criador diz que “toda a vida é uma representação”. Lembro Vale Abraão (1993), do português Manoel de Oliveira, em que se diz de Ema: “Ninguém melhor do que ela imita uma bela vida.” É o que se pode dizer de gênios do cinema como Saura ou Oliveira.

 

(Eron Duarte Fagundes – eron@dvdmagazine.com.br)

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Sobre o Colunista:

Eron Duarte Fagundes

Eron Duarte Fagundes

Eron Duarte Fagundes é natural de Caxias do Sul, no Rio Grande do Sul, onde nasceu em 1955; mora em Porto Alegre; curte muito cinema e literatura, entre outras artes; escreveu o livro “Uma vida nos cinemas”, publicado pela editora Movimento em 1999, e desde a década de 80 tem seus textos publicados em diversos jornais e outras publicações de cinema em Porto Alegre. E-mail: eron@dvdmagazine.com.br

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