A Estrangeira Brasileira
Agustina Bessa-Luís é uma escritora portuguesa de texto bastante denso e criativo
Agustina Bessa-Luís é uma escritora portuguesa de texto bastante denso e criativo. Sua literatura teve associações com o cinema de seu patrício Manoel de Oliveira. Alguns de seus livros foram transformados em filmes por Oliveira. Em alguns filmes de Oliveira, Bessa-Luís participou da construção dos diálogos. O verbo esparramado, barroco, brilhantemente adjetivado de Bessa-Luís tem uma origem: o romancista luso Camilo Castelo Branco. Num de seus romances, aquele que gerou o filme Francisca (1981), de Oliveira, (o romance é Fanny Owen, de 1979), Bessa-Luís evoca a figura tortuosa e apaixonada de Camilo, cujo mundo (verbal e humano) é a literatura em língua portuguesa por excelência.
Em Breviário do Brasil (1991), um ensaio sobre o Brasil em suas diversas regiões, Bessa-Luís apresenta o Brasil aos brasileiros. É um olhar estrangeiro necessariamente. Vários europeus já se debruçaram sobre este país imenso: o francês Claude Lévi-Strauss e o austríaco Stefan Zweig, talvez os principais. Mas no caso de Bessa-Luís é um pouco o olhar duma estrangeira um pouco brasileira: o pai da autora viveu no Rio por vinte e cinco anos. Isto significa que a romancista tem mais intimidade com a vida cotidiana brasileira, mais que a habitual entre os estrangeiros, mesmo que Lévi-Strauss e Zweig tenham vivido por aqui algum tempo. Além disto, a cultura brasileira nasceu muito da cultura portuguesa, desde a língua, apesar de elementos heterogêneos terem entrado depois na composição.
Breviário do Brasil é o diário duma mente aguda e observadora por terras brasileiras. Bessa-Luís começa pelo Rio, claro, e evoca Zweig: “Vou poder dizer tudo sobre o Rio, sem esquecer demasiado?” O texto de Bessa-Luís nunca é condescendente: cria imagens das cidades brasileiras, sejam elas boas ou ruins, para criar sua literatura de ideias sobre a civilização dos trópicos.
Minas Gerais e seu roteiro histórico vão merecer enlevados torneios verbais de Bessa-Luís. “Vamos para Ouro Preto, nesta época pascal, cheia de sol e de flores.” Ela se detém numa cidadezinha quase insignificante, nas cercanias de Belo Horizonte: “Em Sabará (Aleijadinho) esculpiu um São João da Cruz que eu gostaria de ver; até porque Sabará me intriga. Fica situada a pouca distância de Belo Horizonte e, não sei porquê, parece-me ter um significado especial na história mineira.” Quem já esteve em Sabará, como eu, e já circulou em sua praça central e subiu a lomba que conduz ao Museu do Ouro, entende os mistérios da frase de Bessa-Luís. É bem assim: Sabará uma importância à margem. “Ouro Preto é um arrabalde de fantasmas pronto a deixá-los vaguear de dia e de noite.” A História em Minas: o testemunho duma portuguesa. Bessa-Luís foi visitar a vizinha Mariana e depois tornou a Ouro Preto. Eis como descreve: “Era noite quando voltámos ao nosso cerro, em Ouro Preto, e cantavam uns grilos na calada sombra, que eu julgava estar nos vales de Travanca, em Agosto.”
Apaixonante retrato de partes do Brasil, este ensaio de Bessa-Luís é tão breve quanto luminoso.
P.S.: Sem que isto deslustre o brilho de seu texto, há pelo menos um equívoco de citação brasileira. Ao evocar a frase final de Iracema (1865), o romance indianista do cearense José de Alencar, Bessa-Luís põe um “nem tudo passa sobre a terra”. Apesar de partilhar intimidades com a literatura de Alencar, a citação de memória da portuguesa falha. A negação “nem” está demais ali; o que Alencar escreveu é: “Tudo passa sobre a terra.”
(Eron Duarte Fagundes – eron@dvdmagazine.com.br)
Sobre o Colunista:
Eron Duarte Fagundes
Eron Duarte Fagundes é natural de Caxias do Sul, no Rio Grande do Sul, onde nasceu em 1955; mora em Porto Alegre; curte muito cinema e literatura, entre outras artes; escreveu o livro ?Uma vida nos cinemas?, publicado pela editora Movimento em 1999, e desde a década de 80 tem seus textos publicados em diversos jornais e outras publicações de cinema em Porto Alegre. E-mail: eron@dvdmagazine.com.br