As Fraturas na Arte de Chico Buarque
Há fraturas grosseiras em O Irmão Alemão, a memória mal montada dum indivíduo fundamental da cultura brasileira
Chico Buarque de Holanda é um dos maiores compositores da música popular brasileira, e um intérprete suave, escorregadio, original de suas próprias canções. Fez sucesso como músico, e as pessoas comuns não vão lembrar-se dele como o filho do ensaísta Sérgio Buarque de Holanda. Quem é este caboclo, poderá perguntar, em algum instante, algum interiorano desavisado. Na verdade, embora possam encontrar-se aqui e ali, trata-se de universos que não se tocam seguidamente: as sofisticações sociológicas e literárias de Sérgio e as cantadas ao pé do ouvido disseminadas por Chico ao longo de sua vida de canções. De um lado, o erudito, o homem de letras, a biblioteca ambulante; de outro, o popular, ainda que recheado de uma indisfarçada erudição, uma erudição todavia plena de uma certa gentileza. Numa determinada quadra de sua vida, muitos anos depois da morte de Papai Sérgio, o homem da literatura propriamente, Chico se estimula a enveredar pela ficção: escreve romances, agora longe das críticas do pai. Naturalmente, diante do séquito de admiradores do músico, as letras de Chico são bafejadas pelos muitos amigos do jornalismo cultural; no entanto, examinados com alguma atenção, os textos literários de Chico não têm convencimento. Eis então que o assombro da memória do pai atrapalha a nova investida de Chico: talvez este recente escritor quisesse ter sido sempre, desde jovem, um escritor, então apagado pela figura crítica do pai (te ajeita, menino!), e o compositor surgiu como válvula de escape. Válvula que acabou funcionando artisticamente.
O irmão alemão (2014), o mais recente romance de Chico Buarque, parte pressupostamente da investigação que o autor-narrador teria feito sobre a existência de um irmão na Alemanha, fruto duma experiência juvenil de Papai Sérgio. A verdade é que este irmão é somente o pretexto meio sujo do narrador. O verdadeiro confronto é com Papai Sérgio, o escritor que atrapalhou a vida de escritor do filho Chico. O mundo topado na biblioteca do pai perseguiu Chico na juventude e parece persegui-lo até hoje, como se vê em seu atual livro. As relações nebulosas entre Chico e Sérgio são o autêntico tema de O irmão alemão. Um acerto de contas, póstumo e tardio. O excessivo personalismo de Chico atrapalha sua literatura. Torna seu livro uma crônica familiar mal enjambrada.
Chico busca em sua literatura o mesmo que em suas músicas: uma naturalidade, uma conversa na orelha do leitor-ouvinte, uma singeleza engenhosa da frase, um humor que paparica o cotidiano e debocha de sua própria vivência de homem culto. Mas um romance não é uma canção. Mesmo quando o romance vai atrás dos sons das palavras, como na francesa Marguerite Duras, sua estrutura geral é outra, e exige mãos mais firmes do que anedotário humorístico e leve em que circulam as crônicas de passagem.
Há fraturas grosseiras em O irmão alemão, a memória mal montada dum indivíduo fundamental da cultura brasileira. Estas fraturas são em parte determinadas pelos bons sucessos musicais de Chico, em parte pelas confusões entre suas aspirações musicais e suas aspirações literárias. E, acrescendo-se a tudo, o pai é sempre o mal do filho.
(Eron Duarte Fagundes – eron@dvdmagazine.com.br)
Sobre o Colunista:
Eron Duarte Fagundes
Eron Duarte Fagundes é natural de Caxias do Sul, no Rio Grande do Sul, onde nasceu em 1955; mora em Porto Alegre; curte muito cinema e literatura, entre outras artes; escreveu o livro ?Uma vida nos cinemas?, publicado pela editora Movimento em 1999, e desde a década de 80 tem seus textos publicados em diversos jornais e outras publicações de cinema em Porto Alegre. E-mail: eron@dvdmagazine.com.br