François Truffaut: 80 anos
Retrospectiva com filmes do Diretor celebra a data
Ele morreu muito cedo, deixou uma grande ausência no cinema francês e mundial. A retrospectiva que esta sendo feita em São Paulo de François Truffaut (1932-1984) é uma boa ocasião para celebrá-lo através deste artigo que escrevi já há algum relembrando sua importância e a de seu primeiro filme longo, Os Incompreendidos/Les 400 Coups (59).
Os Incompreendidos
Já em sua condição de clássico absoluto, o filme dispensa recomendações mas comporta uma série de informações, fornecidas pela biografia deTruffaut escrita por Antoine De Baecque e Serge Toubiana, que ajudam a melhor apreciá-lo.
Truffaut, conhecido como “o poeta da Nouvelle Vague”, foi o caso mais notável de um crítico que passou com sucesso para a direção. Já neste seu longa de estréia, ganhou o prêmio de direção no Festival de Cannes (no mesmo ano em “Orfeu do Carnaval” levou a Palma de Ouro e “Hiroshima, mon Amour” de Alain Resnais, não ganhou nada!) e depois foi votado como melhor filme estrangeiro pela Associação dos Críticos de Nova York. Foi o início de uma carreira brilhante, que também incluiria um Oscar de filme estrangeiro (por “A Noite Americana”, 1973), uma participação como ator em “Contatos Imediatos do Terceiro Grau” de Spielberg em 1977 (que sai agora em DVD) e uma morte prematura de câncer.
Historicamente “Os Incompreendidos” é considerado o ponto de lança do movimento da chamada Nouvelle Vague (Nova Onda, literalmente), uma expressão que surgiu inicialmente em 3 de outubro de 57, na revista L´Express, num artigo de Françoise Giroud sobre a Juventude, mostrando a necessidade de mudança na sociedade francesa. Quem aplica a expressão ao novo cinema francês é Pierre Billard, em fevereiro de 58 , que é retomada em Cannes na estréia da nova safra de filmes, e logo espalhada pelo resto do país e do mundo. Passa a englobar a primeira safra de filmes de sucesso feito por jovens, que incluem além de “Hiroshima” e “Os Incompreendidos”, “Os Primos” de Claude Chabrol e “Ascensor para o Cadafalso” de Malle.
Era o Novo Cinema Francês que se opunha frontalmente ao “Cinema Antigo”, ou “Cinema de Papai”, como era apelidado o chamado “cinema de qualidade” produzido na época na França, pelos cineastas consagrados daquele momento (Claude Autant-Lara, René Clement, Denys de La Patteliére, Henri Verneuill, René Clair, Jean Dellanoy etc). A oposição a eles já tinha surgido nas páginas da revista “Cahiers du Cinema”, de onde saiu Truffaut e um novo grupo de criticos –cineastas, que incluiria a seguir Jean Luc Godard (foi Truffaut quem ajudou a produzir e escreveu o roteiro de seu “Acossado/A Bout de Souffle, 59”, outro filme seminal do movimento), Jacques Rivette, Eric Rohmer, Claude de Givray, Jacques Doniol Volcroze e mais tarde Bertrand Tavernier.
Foi não apenas no “Cahiers” mas também em outros órgãos de imprensa de prestígio, “Arts” “La Parisienne”, “Le Temps de Paris”, que Truffaut foi o mais combativo e influente crítico de uma nova tendência que valorizava o cinema de autor .Numa época onde a crítica era em grande parte comunista e avaliava os filmes de acordo com os ditames do Partido (seu expoente era o historiador Georges Sadoul), eles criaram a chamada “política dos autores”, que valorizava todo cineasta que imprimisse sua marca pessoal em sua obra, fosse como estilo, ou temática. Sendo que o conceito de “autor” incluía também os próprios produtores, não apenas os realizadores. Foram eles os responsáveis pela reavaliação de todo o cinema norte-americano, coisa que nem mesmo nos EUA estava se fazendo. Tudo isso devido à um fato histórico. Por causa de Segunda Guerra Mundial e a Ocupação nazista da França, eles só puderam assistir aos filmes norte-americanos a partir da Liberação, de 46 em diante e assim mesmo com os filmes lançados fora de ordem cronológica (só então puderam ver por exemplo, “E o vento Levou”, que era de 1939).
Embora aos poucos fosse se posicionando junto à esquerda, contra a Guerra da Argélia e a política do General De Gaulle, Truffaut nunca foi engajado. O brilhantismo de sua carreira e a qualidade de sua obra, não interfere porém com outro aspecto, seu discutível caráter. Até os amigos admitiam que ele era um arrivista (uma palavra fora de moda para definir “oportunista”), que com frequência polemizava a favor dos amigos (ou daqueles que deseja ficar amigos) ou em troca de alguma vantagem. E não há como negar que era uma pessoa ao menos prática. Homem de muitos amores e amantes, quando se casou escolheu justamente uma garota judia, Madeleine Morgenstern, única filha de um grande distribuidor francês, Ignace Morgenstern, diretor da Cocinor (Comptoir Cinématographique du Nord), que conheceu durante um Festival de Veneza. Adivinhem quem lhe produziu “Os Incompreendidos”? Obviamente seu sogro, que por sinal logo iria falecer deixando para Truffaut a organização que viria a se tornar a produtora dele, “Les Films de la Carrosse”. Comprovando assim a teoria de que a Nouvelle Vague foi basicamente fruto da alta burguesia , a qual pertencia por exemplo Malle (vindo de família de diplomatas).E Claude Chabrol produziu seu primeiro filme , “Nas Garras do Vício”, graças à uma herança que lhe deixou o pai.
Truffaut também era formidável na auto-promoção, mantendo uma rede de “amigos” e correspondentes, entre jornalistas e diretores de Festivais pelo mundo todo, que lhe garantiam a exibição e aprovação internacional de suas fitas. Além de também fazer aquilo que os americanos chamam de “networking”, se aproximando e ficando amigos dos diretores que admirava e a quem utilizava quando necessário( de Jean Cocteau à Roberto Rossellini, dois de seus mais achegados amigos). Para ser justo, também foi fiel à quase todos os amigos e colegas, a quem ajudou a realizar os filmes, muitas vezes sem crédito e ou lucro.
Não se pode negar que Truffaut é o santo patrono de todos os cinéfilos. Mesmo porque ele deve ter sido o maior de todos eles , se não o inventor do conceito. É muito ilustrativo, o fato de que uma das razões porque ele foi preso como marginal, estava o fato de ter roubado para poder sustentar um cine-clube de bairro (que dava prejuízo constante) e parte das dívidas foram cobertas com a venda de fotos de cena que ele e um amigo haviam roubado das portas das salas de cinema. Até hoje existem arquivadas as fichas e filmografias que ele mantinha sobre os cineastas (é importante notar que isso não era um hábito na imprensa mundial, nem mesmo na francesa. Só depois dele se tornou corriqueiro).
Parece também evidente que Truffaut usou sua função de critico para realizar o sonho de dirigir filmes, manipulando influencias e contatos. Provocador, insolente, chegou a ter sua credencial de imprensa negada no Festival de Cannes de 1958, justamente aquele que o premiaria no ano seguinte. Antes de passar para o longa, fez dois curtas, “Les Mistons” (Os Pivetes) e uma comédia chamada “L´Historie de L´Eau” , que nem chegou a ser lançada.
O primeiro projeto era um projeto meio indefinido sobre a infância para ser estrelado por Yves Montand como diretor de uma escola. Depois passou a ser a adaptação de um romance de Jacques Cousseau, “Temps Chaud” , que acabou não sendo realizado porque a atriz prevista Bernadette Laffont sofreu um acidente grave. Mas finalmente acabou sendo “Os Incompreendidos”, uma fita de orçamento baixo ( Quarenta milhões de francos antigos, muito abaixo da média da época) que reaproveitava e estendia uma idéia que ele iria utilizar num dos episódios da fita sobre a infância,”La Fugue d´Antoine”. Era um fato real de sua adolescência, quando ao bolar aula e esquecer de fazer um trabalho de casa, para fugir ao castigo deu a desculpa de que “minha mãe morreu!”. E por isso levou monumental bofetada!
A partir daí Truffaut utilizou outras recordações de sua infância conturbada, suas fugas ao lado do amigo Lachenay, o conflito com os pais ausentes, o flagrante de ver sua mãe com o amante na Praça Clichy e assim por diante. O filme é extremamente autobiográfico (algumas vezes Truffaut desmentiu o fato apenas para não piorar a relação com os pais que ficaram ofendidos com o que ele mostrou na fita, deixaram de se falar mesmo por alguns anos) embora ele tenha incorporado ao personagem central também elementos da vida do amigo de aventuras Lachenay e também do ator que foi escolhido para protagonista Jean -Pierre Léaud. Outra mudança importante. Condensou cinco anos de sua vida para um período menor de tempo e transpôs a ação da Ocupação e imediato Após-Guerra para o presente, nos anos Cinqüenta.
Mas quase tudo que “Os Incompreendidos” mostra tem seu paralelo na vida real de Truffaut. Mas nem tudo ele contou.
Nascido em 6 de fevereiro de 1932, como François Roland, filho natural de Janine de Monferrand , uma mãe solteira de família católica e conservadora. Era portanto um “filho do pecado” e por causa disso para sempre desprezado pela mãe. Foi criado primeiro pela avó e só com a morte dela que foi viver com os pais em Paris, num pequeno apartamento . Diante de tanta indiferença e muita leitura, passou a desconfiar de havia algo errado, acabando por descobrir que era filho adotivo do sr. Truffaut (ele achava esse pai adotivo um fraco mas o preferia à mãe , a quem nunca perdoou). Somente muitos anos mais tarde, já famoso, é que surgiria a verdade; seu pai verdadeiro era judeu.
A rebeldia em casa e na escola era justificada pela incompreensão familiar (tudo isso retratado no filme), só minorada pela paixão pelo cinema e a literatura, o que acaba provocando pequenos furtos, que culminam com sua internação feita pelo próprio pai num reformatório (a lei francesa permitia isso). O filme deixa de mostrar que o cinema seria sua própria salvação, quando ficou amigo do crítico mais influente da época, André Bazin, que se tornou seu padrinho e o orientou na carreira (Bazin morreria de leucemia com apenas 40 anos em 11 de novembro de 58, no dia seguinte ao do início das filmagens de “Os Incompreendidos”).
Mas fundamentalmente tudo que Truffaut mostra é real (a paixão do pai pelo alpinismo virou paixão pelos automóveis, o nome Antoine Doinel foi adotado em homenagem ao amigo diretor Jean Renoir, sua assistente tinha esse sobrenome). Para o roteiro de 94 páginas Truffaut contou com a ajuda de Marcel Moussy, autor de uma série popular na TV da época (Si c´était vous) .Decidido a rodar em formato Cinemascope e preto e branco, quis utilizar um dos melhores diretores de fotografia do momento, Henri Decae (que havia trabalhado com Jean-Pierre Melville, Louis Malle e Chabrol), conhecido também por sua rapidez e preferencia pela iluminação natural (foi ele que recebeu o mais alto salário da equipe, maior do que o próprio diretor). Na escolha do elenco, seleciona um grupo de coadjuvantes pouco conhecidos e coloca anúncio nos jornais para encontrar seus dois protagonistas. Foi porém um colega de Cahiers, Jean Domarchi, que recomendou-lhe Jean- Pierre Leáud, filho de um assistente de roteiro e da atriz Jaqueline Pierreux. Um garoto de 14 anos, que já fizeram um papel pequeno em “Tour, prends Garde”, de Georges Lampin, ao lado de Jean Marais. Se identifica tanto com ele, com sua rebeldia, que concluídas as filmagens, praticamente o adota, não apenas se tornando seu alter-ego numa série de filmes como chega a alugar um quarto perto da casa onde vivia com a mulher e duas filhas, para que o rapaz não se meta mais em apuros.
As filmagens foram sem complicações . A longa corrida em direção ao mar, que encerra o filme, foi rodada na praia perto de Villers- sur- Mer, com a câmera instalada num carro (que lhe permite um travelling). Uma seqüência que culmina com Antoine Doinel olhando diretamente para a câmera, como se perguntasse , “com quem direito está me julgando?”
O próprio Truffaut admitiu que aproveitou a idéia de um filme de Ingmar Bergman, “Mônica e o Desejo” embora o que tenha ficado mais famoso tenha sido outro recurso, o da imagem congelada (freeze-frame), o que era muito raro ou mesmo inédito no cinema.
Enquanto a Nouvelle Vague como movimento teve um importante sabor de renovação em todo o Cinema francês, abrindo caminho para uma nova geração, revolucionando a linguagem, liberando a câmera para as filmagens nas ruas, com luz natural, atores mais jovens, novos ídolos, como teoria a “Política dos Autores” acabou tendo enorme influencia em todo o mundo (de tal forma que a possível greve que deve estourar em Hollywood em breve é também pela moda dos diretores assinarem “um filme de ...”, um crédito autoral que é fruto justamente de Truffaut e seus amigos).
A carreira de Truffaut continuaria a ser intensamente autobiográfica, com o personagem de Doinel retornando mais tarde em outras fitas (Amor Aos Vinte Anos/ L´Amour à 20 ans, Episódio, 62; Beijos Proibidos/Baisers Volés, 68; Domícilio Conjugal/ Domicile Conjugal,70 e Amor em Fuga /L´Amour en Fuite, 78). Também faria outros grandes filmes, “Jules et Jim/Uma mulher para Dois, 62”, sendo o mais famoso deles, enquanto “O Ultimo Metrô /Le Dernier Metro, 1980” foi o mais premiado (ao menos na França). Nenhum porém tão sincero, renovador, humano e autobiográfico quanto “Os Incompreendidos”. PS- Livros recentes revelam amores até então não confirmados (com Catherine Deneuve, Jeanne Moreau, e a revelação de Claude Jade). O amigo Claude Miller dirigiu um roteiro que ele havia deixado inédito (Ladra e Sedutora, La Petite Voleuse, 1988) com Charlotte Gainsbourg, Simon de la Brosse. Em 96, outro roteiro antigo seu “Belle Époque” foi adaptado para a TV francesa.
Sobre o Colunista:
Rubens Ewald Filho
Rubens Ewald Filho é jornalista formado pela Universidade Católica de Santos (UniSantos), além de ser o mais conhecido e um dos mais respeitados críticos de cinema brasileiro. Trabalhou nos maiores veículos comunicação do país, entre eles Rede Globo, SBT, Rede Record, TV Cultura, revista Veja e Folha de São Paulo, além de HBO, Telecine e TNT, onde comenta as entregas do Oscar (que comenta desde a década de 1980). Seus guias impressos anuais são tidos como a melhor referência em língua portuguesa sobre a sétima arte. Rubens já assistiu a mais de 30 mil filmes entre longas e curta-metragens e é sempre requisitado para falar dos indicados na época da premiação do Oscar. Ele conta ser um dos maiores fãs da atriz Debbie Reynolds, tendo uma coleção particular dos filmes em que ela participou. Fez participações em filmes brasileiros como ator e escreveu diversos roteiros para minisséries, incluindo as duas adaptações de Éramos Seis de Maria José Dupré. Ainda criança, começou a escrever em um caderno os filmes que via. Ali, colocava, além do título, nomes dos atores, diretor, diretor de fotografia, roteirista e outras informações. Rubens considera seu trabalho mais importante o Dicionário de Cineastas, editado pela primeira vez em 1977 e agora revisado e atualizado, continuando a ser o único de seu gênero no Brasil.