A Demência de Sade Contra o Moralismo Burguês

Donatien Alphonse François, que chegou à posteridade como o Marquês de Sade, não conheceu limites para a imaginação da perversidade sexual do homem

20/04/2019 01:22 Por Eron Duarte Fagundes
A Demência de Sade Contra o Moralismo Burguês

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Donatien Alphonse François, que chegou à posteridade como o Marquês de Sade, não conheceu limites para a imaginação da perversidade sexual do homem. Escritor notável pela invenção de cenas e a tensa criatividade de sua forma de manejar a língua e narrativa, Sade atingiu o ponto culminante de sua loucura em Os 120 dias de Sodoma ou A escola da libertinagem (Les 120 journées de Sodome ou L’école du libertinagem). Composto nas prisões por onde andou (o lado infecto dos cenários carcerários da época de Sade deve ter determinado, em parte, a caracterização da volúpia do excremento que centraliza algo do espírito do livro), Sade perdeu os manuscritos de seu romance escatológico ao ser libertado da Bastilha, nos estertores do século XVIII; o autor morreu com a desolação de que seu grande e virulento panfleto antimoral nunca mais viria à luz. Passou-se mais de século. O livro era citado, mas ninguém o tinha lido nas gerações que vinham. O achado e a publicação vieram no século XX. O mais maldito de todos os textos teve uma história maldita: mais de cem anos para topar seus leitores.

Na introdução Sade começa com uma visão política: “As guerras consideráveis que Luís XIV travou durante seu reinado, espoliando as finanças do Estado e os recursos do povo, enriqueceram secretamente uma multidão de sanguessugas sempre atenta às calamidades públicas, que provocam e nunca aplacam, para tirar proveito com maiores vantagens.” É na introdução também que o narrador apresenta as personagens, o harém das meninas, o harém dos meninos, os oito fodedores. Nomes como Quebra-cu e Vara-ao-céu trazem claramente as ideias dos trechos. Nobrezas como o Duque e o Presidente, autoridade de nome eclesiástico como o Bispo não iludem ninguém. Do Bispo se diz: “É velhaco, hábil, fiel sectário da sodomia ativa e passiva; despreza absolutamente qualquer outra espécie de prazer; matou cruelmente duas crianças cuja fortuna considerável um seu amigo deixara em suas mãos. Seu sistema nervoso tem tanta sensibilidade que quase desmaia ao esporrar.”

Sade descreve de maneira bastante objetiva (se diria, quase documental, como se sua imaginação enxergasse algo real) os vícios de suas criaturas, os êxtases proibidos e onde a proibição fazia exalar uma forma mais demoníaca. “O celerado, sabendo a hora exata da execução, escolheu esse momento para deflorar a menina nos braços de sua mãe, e tudo foi arranjado com tanta destreza e precisão que o celerado esporrou no cu da filha precisamente no momento em que o pai expirava.” Duro, problematicamente duro, isento de compaixão, humanidade: mas um escrito impiedosamente perfeito em sua dose sintática, semântica, morfológica, numa sequência de orações e conjunções capaz de ordenar o caos e as malversações. Um estupendo prodígio: digam nossos pudores e medos o que disserem.

Comer merda é uma coisa reiterativamente lúbrica ao longo do romance de Sade. Não se fode ninguém sem antes lhe comer as coisas putrefatas que lhe saem do cu. Sade, imagino-o em perturbações nos cárceres do século XVIII, topa o prazer no horrível e quer passar isto ao leitor. Uma velha, por exemplo. A lubricidade do velho, do sujo. “Thérèse tinha sessenta e dois anos. Era alta e esguia, nem um único dente na boca, abertura de seu corpo que exalava um cheiro capaz de derrubar. Tinha o cu eivado de feridas e as nádegas tão prodigiosamente flácidas que se podia enrolar sua pele em torno de um bastão; pela largura e pelo odor, o buraco desse belo cu parecia a boca de um vulcão, uma verdadeira cloaca; em toda sua vida, dizia ela, nunca o limpara, o que comprova perfeitamente que ainda havia nele merda desde sua infância. Quanto a sua vagina, era o receptáculo de todas as imundícies e todos os horrores, um verdadeiro sepulcro cuja fetidez provocava desmaios. Tinha um braço torto e mancava de uma perna.” Há uma personagem em que “uma erisipela coleia seu traseiro e homorroidas do tamanho de um punho pendiam de seu ânus”; o leitor põe-se a imaginar estas protuberâncias saindo do corpo da criatura. E a profissão de fé dos seres de Sade exclama: “Hoje um, amanhã outro, é preciso ser puta, minha querida, puta na alma e no coração.” A necessidade de defecar como uma necessidade sexual, sempre. “Ele passa um bordel inteiro em revista; recebe chicotadas de todas as putas, beijando o olho do cu da cafetina que lhe peida e caga na boca.” É horrível? Mas há sentenças que ainda faria os religiosos de hoje encolerizar-se: “Ele se faz açoitar, masturbando-se e esporra sobre um crucifixo encostado nas nádegas de uma moça.”

Dono de excitações visionárias prodigiosas, absoluto senhor das palavras e das tensões narrativas, Sade, bem antes do também francês Arthur Rimbaud, foi a verdadeira estação no inferno. As cenas de Os 120 dias de Sodoma foram na verdade encenações do documentário de sua mente à deriva, o lado-limite do humano; é preciso que o leitor entenda isto para não mergulhar e soçobrar em seus paradoxos. Filmado pelo cineasta italiano Pier Paolo Pasolini pouco antes de ser assassinado em 1975, em Roma, o romance de Sade segue um perigoso e inevitável caminho para quem  dele se aproxima.

 

 

(Eron Duarte Fagundes – eron@dvdmagazine.com.br)

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Sobre o Colunista:

Eron Duarte Fagundes

Eron Duarte Fagundes

Eron Duarte Fagundes é natural de Caxias do Sul, no Rio Grande do Sul, onde nasceu em 1955; mora em Porto Alegre; curte muito cinema e literatura, entre outras artes; escreveu o livro ?Uma vida nos cinemas?, publicado pela editora Movimento em 1999, e desde a década de 80 tem seus textos publicados em diversos jornais e outras publicações de cinema em Porto Alegre. E-mail: eron@dvdmagazine.com.br

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