A Encenação Jornalística
O diretor de cinema Billy Wilder foi jornalista em Viena e em Berlim antes de ser descoberto por Hollywood. A Primeira Página é obra-prima crepuscular de Wilder, certamente uma das peças fundamentais do cinema americano dos anos 70
O diretor de cinema Billy Wilder foi jornalista em Viena e em Berlim antes de ser descoberto por Hollywood. Estas experiências de juventude lhe valeram para dar autenticidade à sua visão do jornalismo americano no fim dos anos 20 em A primeira página (The front page; 1974), uma obra-prima crepuscular de Wilder, certamente uma das peças fundamentais do cinema americano dos anos 70. É o relato cinematográfico mais contundente da prática jornalística do século XX; com seu habitual cinismo (cinismo que lhe permitiu olhar sem pudores o universo de adultério e crime em Pacto de sangue, 1945; o drama do alcoolismo em Farrapo humano, 1945; a decadência da nobreza européia em A valsa do imperador, 1947; o caso de um mito hollywoodiano em Crepúsculo dos deuses, 1950; o desejo e a tentação em O pecado mora ao lado, 1955; a permuta de sexualidade em Quanto mais quente melhor, 1959) e sua clarividência de narrativa em imagens imbatível, Wilder monta uma de suas farsas humanas impagáveis.
Em A primeira página Wilder utiliza cenários reduzidos (uma redação de jornal e uma sala de imprensa, basicamente) para centralizar o eixo narrativo na obsessão do jornalista, a atração mútua entre o jornalista e uma notícia que é um furo; sem planos gerais, sem primeiros planos, sem planos-seqüência, a linguagem de Wilder é feita de planos médios e duma articulação de montagem com um senso de tempo tão preciso quanto o dum relógio fílmico. O resultado é uma narrativa que parece nascida de um sopro único, é como se o cineasta a vomitasse numa tacada só, uma só seqüência ; é um filme de parcos cenários, de conversações intermináveis, as ações das personagens surgem nos interstícios dos diálogos, mas em momento algum opta pela lentidão européia: o que há de europeu, ou austríaco, no cinema de Wilder é um refinamento, que se foi ocultando quanto mais ele estudava as formas de Hollywood e as adaptava à sua criatividade. Em A primeira página ele é tão notavelmente hollywoodiano que já nos esquecemos de suas origens do Velho Mundo; mas em momento algum sua capacidade muito americana de comunicação com o público abastarda a autenticidade crítica de sua arte.
Demais, convém observar a química entre a direção enxuta e humorística de Wilder e seus intérpretes centrais, Jack Lemmon como o jornalista hesitante entre sua paixão profissional e sua paixão pela mulher com quem está prestes a casar-se e Walter Matthau como o editor de jornal cujo cinismo é um espelho daquele enviesado olhar que o próprio cineasta lança sobre o mundo. O dueto interpretativo de Lemmon e Matthau é um dos grandes duetos cênicos da história do cinema e se afina perfeitamente com os métodos estilísticos de Wilder; os atores, característicos “modelos” de Wilder, voltariam a trabalhar com o realizador em Amigos, amigos, negócios à parte (1981), seu último filme, um trabalho mais amorfo, porém onde a veia de Wilder ainda derrama seu sangue sobre seus intérpretes. Susan Sarandon como a noiva desesperada com a fuga de seu pretendente para o jornalismo já ensaiava o jeito de grande atriz que viria a ser nos anos subseqüentes.
Em seus tempos de jornalista em Viena, dizem que Wilder aspirava a entrevistar o famigerado psicanalista Sigmund Freud: foi um desejo frustrado e isto que poderia fazer avançar sua carreira jornalística talvez tenha ficado como uma mágoa de juventude, servindo ao Wilder cineasta para ironizar os psiquiatras. Em A valsa do imperador um alienista aplica teorias psicanalíticas para analisar o caso duma cadela de madame; em A primeira página é um psiquiatra, ao tentar reconstituir o crime com um condenado à forca, quem vai permitir a fuga do criminoso e o que há de ação ao longo da narrativa.
A primeira página tem origens teatrais, isto é perceptível pela exigüidade da ambientação, pelos diálogos ininterruptos e até pela valorização das interpretações; trata-se de um texto de Ben Hecht e Charles McArthur escrito em 1928, ou seja, um texto que tratava de assuntos contemporâneos, fim dos anos 20, a Grande Depressão Econômica e o tipo de relações entre os indivíduos da sociedade americana da época. Wilder, prodigioso, retira a linguagem do gueto teatral, dando-lhe uma dinâmica fílmica impressionante, e também impede que suas questões sejam datadas, graças à eternidade de seu humor. Dizia-se nos anos 70 que o assunto jornalismo num filme de Hollywood voltava a interessar porque a figura do jornalista, com o escândalo Watergate às costas, se tornara uma estrela do momento. Agora, em 2007, passados mais de trinta anos da realização do filme, A primeira página conserva sua perenidade como obra de arte para além dos episódios históricos pitorescos que envolveram a peça em que o filme se baseou e depois, nos anos 70, a própria chamada comercial do filme de Wilder. Uma obra-prima sobre o jornalismo como encenação; e neste aspecto, como tudo o mais na vida, jornalismo é também cinema.
(Eron Duarte Fagundes – eron@dvdmagazine.com.br)
Sobre o Colunista:
Eron Duarte Fagundes
Eron Duarte Fagundes é natural de Caxias do Sul, no Rio Grande do Sul, onde nasceu em 1955; mora em Porto Alegre; curte muito cinema e literatura, entre outras artes; escreveu o livro Uma vida nos cinemas, publicado pela editora Movimento em 1999, e desde a década de 80 tem seus textos publicados em diversos jornais e outras publicações de cinema em Porto Alegre. E-mail: eron@dvdmagazine.com.br