Um Drama Familiar Como Nos Velhos Tempos
Uma encenação que, se ainda é naturalista, tem certas doses de um realismo poético, transcendente
A música corta a imagem por dentro. Imagens abertas da natureza (descampados rurais do interior inglês) são coladas a faixas musicais impositivas e ritualísticas; estas imagens-música são interstícios estéticos entre as sequências que vão acompanhando, dia por dia, o drama duma família em que o pai cumpre pena numa prisão enquanto a mãe se desdobra com quatro filhos. Este é o achado essencial de Todos os dias (Everyday; 2012), dirigido pelo realizador britânico Michael Winterbottom: uma imagem quase abstrata do campo se abre para a música para atingir o próprio nervo narrativo do filme. De uma certa maneira, Winterbottom remete a um certo cinema europeu dos anos 60 aos 80, em que as câmaras dos grandes diretores se voltavam para a família visando a iluminar aspectos das reflexões sociais que palpitavam naquela época. No entanto, Winterbottom não é um artista anacrônico: é um homem de cinema capaz de atualizar os signos narrativos e fílmicos com uma força de imagem incomum nos dias de hoje.
As dificuldades do relacionamento de um casal nestas condições (ele na cela, ela cá do lado de fora com uma família por manter, econômica e afetivamente) são expostas com um rigor realista pelo cineasta. A maneira como estas dificuldades conjugais afetam as crianças transparece exemplarmente. A intromissão do bom amigo da família, com quem ela tem um velado caso nunca materializado diretamente na imagem, contrasta com suas visitas amorosas ao marido na cadeia e com os não menos amorosos encontros que o casal tem quando o prisioneiro tem suas folgas para vir para casa. Depois, quando ela confessa a traição, mas esforça-se pelo amor conjugal e suas declarações desesperadas, exasperadas e insistentes, um vagar melancólico não impede o caminho exitoso do final rumo do mar e da felicidade, a família toda reunida, caminhando pela praia.
A autenticidade das interpretações das crianças é outro dado que evoca um cinema antigo mas sempre presente, aquele de excelentes diretores de infantes, como o francês François Truffaut e o espanhol Carlos Saura. Para facilitar seu trabalho de dirigir os mirins, Winterbottom usou quatro irmãos para interpretar os filhos do casal. Boa parte da veracidade das situações e dos diálogos vem daí.
A natureza provocativa e crua do cinema de Winterbottom, conhecida em filmes como Código 46 (2003) e 9 canções (2004), é agora refinada por uma encenação que, se ainda é naturalista, tem certas doses de um realismo poético, transcendente. Não no sentido francês, à Jean Cocteau, mas muito mais próximo das relações entre imagens do neorrealismo italiano (Roberto Rossellini ou Ermano Olmi). Certos músicas religiosas e místicas entoadas na escola (ou na igreja) pelas crianças encaminham as coisas por aí.
(Eron Duarte Fagundes – eron@dvdmagazine.com.br)
Sobre o Colunista:
Eron Duarte Fagundes
Eron Duarte Fagundes é natural de Caxias do Sul, no Rio Grande do Sul, onde nasceu em 1955; mora em Porto Alegre; curte muito cinema e literatura, entre outras artes; escreveu o livro Uma vida nos cinemas, publicado pela editora Movimento em 1999, e desde a década de 80 tem seus textos publicados em diversos jornais e outras publicações de cinema em Porto Alegre. E-mail: eron@dvdmagazine.com.br