Tios Literários
Meu tio Jules (Mon oncle Jules, 1883) é um conto de Guy de Maupassant, Tio Lia no Seu Cotidiano (2016) é um belo conto de Juremir Machado da Silva.
Meu tio Jules (Mon oncle Jules; 1883) é um conto de Guy de Maupassant que apresenta toda a inteireza narrativa do grande contista. Utiliza, com o charme da introdução, o truque em que um primeiro narrador aparece unicamente para dar voz ao segundo narrador, aquele que, diante das vistas do primeiro narrador, viveu um episódio que vai abrir as cortinas da história (que pertence ao segundo narrador) que se vai contar no conto. A história do primeiro narrador começa e termina nas três primeiras orações de Meu tio Jules: “Un vieux pauvre, à barbe blanche, nous demanda l’aumône. Mon camarade Joseph Davranche lui donna cent sous. Je fus surpris.” (“Um velho pobre, barba branca, nos pediu uma esmola. Meu amigo Joseph Davranche lhe deu cem sous. Surpreendi-me.”). A cena de Maupassant, realismo do século XIX: numa rua, um mendigo se acerca de dois amigos para lhes pedir um ajutório; um deles dá, para espanto do outro, que é o que começa narrando o conto. Após a revelação do espanto, o inominado narrador que abre a história faz uma última frase: “Il me dit.” (“Ele me disse.”) Então o amigo do primeiro narrador, este amigo tem nome e é Joseph, passa a explicar seu gesto, contando uma história familiar.
“Ce misérable m’a rappelé une histoire que je vais te dire et dont le souvenir me poursuit sans cesse. La voici.” (“Este miserável me lembrou uma história que vou te contar e cuja lembrança me persegue sem cessar. Eis.”). Então surge em pleno a infância do contador da história. Sua família de escassos recursos, um pai, uma mãe, o menino que agora adulto conta a história, duas irmãs. O pai fora enganado por um irmão, que o teria logrado numa herança; este irmão teria fugido para a América, para fazer a vida, ganhar dinheiro. Estaria aí a famosa personagem do folclore familiar francês, o tio da América, que rendeu ao diretor de cinema Alain Resnais um de seus melhores filmes? As cartas enviadas pelo tio da América prometem: estaria próspero e prometia devolver ao irmão o prejuízo outrora causado. Era a esperança da família!
“Et chaque dimanche, en voyant les grands navires qui revenaient de pays inconnus et lointains, mon père prononçait invariablement les mêmes paroles:
‘Hein! si Jules était lá-dedans, quelle surprise!’”
(“E todo domingo, vendo os grandes navios que retornavam de países desconhecidos e longínquos, meu pai pronunciava invariavelmente as mesmas palavras:
‘Hein! Se Jules estivesse lá dentro, que boa surpresa!’”
As idas ao cais nos domingos para esperar o tio Jules davam em branco. Então, depois que uma das filhas solteironas se casou, o marido, se não era rico, era bem posto financeiramente na via, pagou as passagens da família para que fossem à América procurar o tio sumido. No navio, a surpresa. Acabam reconhecendo o velho tio num vagabundo esmoleiro do navio: dão-lhe esmolas os parentes antigamente ludibriados por sua malandragem.
O texto final de Maupassant revela a melancolia narrativa:
“Je n’ai jamais revu le frère de mon père!
Voilà pourquoi tu me verras quelquefois donner cent sous aux vagabonds.”
(“Eu jamais revi o irmão de meu pai!
Eis porque tu me verás às vezes dar cem sous aos vagabundos.”)
* * *
Tio Lia no seu cotidiano (2016) é um belo conto de um dos grandes ficcionistas brasileiros: o gaúcho Juremir Machado da Silva. É inédito em livro. Foi publicado originalmente no Caderno de Sábado do jornal Correio do Povo.
O cheiro do pampa percorre a narrativa de Juremir. Seu realismo tem um outro fundo, distante das evocações morais dum narrador do século XIX. O texto de Juremir é quase uma pintura em palavras; a objetividade quase técnica de Maupassant é substituída por expressões mais largadas, contemplações gestuais que remetem a uma espécie de influência do século do cinema sobre a literatura, um olhar rítmico, que vai estudando o compasso à medida que as teclas verbais se despejam na página.
Tio Lia, o protagonista que circula pelas evocações do texto de Juremir, é um ente misterioso e ao mesmo tempo um elo de ligação entre as atmosferas transpostas em palavras. É um cadenciar antigo que Juremir tenta trazer a uma literatura que tem as armas ultramodernas de narrar. O primeiro parágrafo é um sopro forte no ouvido do leitor.
“Cinco horas. Tio Lia levanta. Todo santo amanhecer. Faz 48 anos que repete os mesmos gestos precisos. Ergue-se do catre, veste a bombacha, recolhe o poncho de baeta encarnada com o qual se tapa, lava o rosto numa bacia branca esmaltada. Tira de sob a cama um penico que faz par com a bacia. Vai até o fundo do pátio jogar a urina fora. Durante muito tempo, saía para o pátio no meio da noite e aliviava-se olhando as estrelas ou sentindo o vento frio no rosto crispado. Já não tem saúde para enfrentar a intempérie. Urina cada vez mais. Acende o fogo, prepara o mate, busca o petiço no potreiro atrás do rancho. Nunca muda a ordem das suas ações. Toma o seu chimarrão sentado num banco rústico de madeira de espaldar alto. O seu único conforto é o pelego vermelho sobre o qual se abanca.”
Suspeita-se que tio Lia tenha algum momento criminoso ou nebuloso em sua trajetória. Daí seu jeito arredio, que fecha com seu cotidiano e seu cenário. “A paisagem é de uma beleza dolorida.” Nunca se sabe. Nunca se saberá. Tio Lia, na construção do conto, é um acúmulo de gestos e passagens. Tio Lia parece um nome, em que tio é somente um prenome: tio sem sobrinhos. Não é como o Jules de Maupassant, em que um sobrinho-narrador o levanta do chão para refazer na esmola literária a esmola da infância num navio. Tio Lia é. Ou é quase uma abstração: o cotidiano que lentamente se torna abstrato. Do começo ao fim do conto, o presente histórico ou narrativo domina as situações: no lugar dos tempos verbais no passado, o presente, como se tudo estivesse acontecendo agora, aos olhos do leitor. Esta vivacidade presente faz de Tio Lia também um acumulador dos tempos verbais antes que de suas ações cotidianas. “O último passo é a travessia do pequeno arroio antes da casa onde passa os seus dias. Cada vez que o transpõe, sente que deixa algo importante para trás.”
Tio Lia no seu cotidiano é um presente literário para estes tempos rígidos, sem inspiração. Não tem a chamada fácil das propostas intelectuais de estima, como aquelas voltadas para a orientação social e política mais direta; mas, em sua exigência rítmica e constante criatividade de situações de linguagem dentro duma realidade, traz a força do ficcionista, o traço do observador que recria (mais pintor que fotógrafo) o que se passa diante de seus olhos.
“A jornada de trabalho é monótona. Tudo se repete há décadas.”
Enfim, se Jules estiver lá, que bela surpresa! Não é Jules, é Tio Lia: que bom também. O importante é ter palavras e contar boas histórias, aprendi ainda em criança ao começar a ler.
(Eron Duarte Fagundes – eron@dvdmagazine.com.br)
Sobre o Colunista:
Eron Duarte Fagundes
Eron Duarte Fagundes é natural de Caxias do Sul, no Rio Grande do Sul, onde nasceu em 1955; mora em Porto Alegre; curte muito cinema e literatura, entre outras artes; escreveu o livro ?Uma vida nos cinemas?, publicado pela editora Movimento em 1999, e desde a década de 80 tem seus textos publicados em diversos jornais e outras publicações de cinema em Porto Alegre. E-mail: eron@dvdmagazine.com.br