O Ensaio à Romance de Santiago
O mineiro Silviano Santiago é um dos cérebros literários mais sedutores do país, e não é de hoje
O mineiro Silviano Santiago é um dos cérebros literários mais sedutores do país, e não é de hoje. A leitura tardia de Em liberdade (1981) vem confirmar-mo. É uma elaborada construção ficcional que se apresenta como documento lítero-histórico: sob a aparência exposta de texto documental catado em arquivo, é, como se anuncia logo após seu título, “uma ficção de Silviano Santiago”. Uma invenção que poderia ser verdade, que tem as coerências da realidade.
Que é Em liberdade? O falso (porque inexistente) diário do escritor alagoano Graciliano Ramos em seus primeiros dias depois que o livraram do cárcere do Estado Novo, nos anos 30 do século passado. Que faz o escritor mineiro para montar esta aventura nordestina? Traveste-se um pouco de Graciliano: mimetiza aquele conhecido estilo do alagoano, aquela escrita entre castiça e simples, os raciocínios diretos e secos de São Bernardo (1934), um dos principais textos de Graciliano, quem prestar atenção e recorrer à memória das leituras dos romances de Graciliano vai observar como Santiago chama a seu texto o uso de certas sintaxes e um certo vocabulário que é hábito nos escritos de Graciliano. Santiago incorpora Graciliano: Santiago é em dada instância Graciliano. Muitos anos depois, o autor mineiro depuraria ainda mais este processo, chegando a seu livro mais extraordinário, Machado (2016), em que inventa, a partir de pesquisas documentais, seu Machado de Assis, transformando-se, o próprio Santiago, lá pelas tantas, no romancista de Dom Casmurro (1900). Em liberdade ainda sofre as agruras intelectuais de Silviano Santiago: é um sofrimento soberbo, uma exposição literária que, apesar das características secas de sua escritura, transborda na forma narrativa de superposições. No final, o Graciliano de Santiago faz anotações sobre um projeto de livro sobre o inconfidente Cláudio Manoel da Costa, poeta que se suicidou no cárcere. Como Santiago faz com Graciliano, o Graciliano de Santiago estaria fazendo com Cláudio, a personagem histórica, uma incorporação. “Quando mergulhar de novo, Cláudio já existirá na folha de papel em branco, onde jogarei as suas palavras. Escreverei com a sua voz as suas palavras. Não serei mais eu. Narrarei os fatos com os meus olhos, a sua perspicácia e os seus cálculos.” Os meus olhos e a sua perspicácia. Cláudio por Graciliano, Graciliano por Santiago, as simbioses em texto. “Não sinto o meu corpo. Não quero senti-lo por enquanto. Só permito a mim existir, hoje, enquanto consistência de palavras.”
Como todo escritor, o Graciliano de Santiago (como ensaísta e romancista, Santiago faz o que anuncia a frase do crítico Otto Maria Carpeaux num estudo clássico, “vou construir o meu Graciliano Ramos”, e que aparece como epígrafe de Em liberdade) sai de suas fantasias criativas para seu cotidiano. Anota o Graciliano de Santiago: “Volto à superfície.” Saindo de suas divagações sobre o poeta inconfidente, uma frase da rotina: “Fui buscar Heloísa hoje no cais. Veio com as nossas duas filhas menores. Não sei como vamos todos caber no exíguo quarto da pensão.” Um dos fascínios de Em liberdade são estes contrastes.
(Eron Duarte Fagundes – eron@dvdmagazine.com.br)
Sobre o Colunista:
Eron Duarte Fagundes
Eron Duarte Fagundes é natural de Caxias do Sul, no Rio Grande do Sul, onde nasceu em 1955; mora em Porto Alegre; curte muito cinema e literatura, entre outras artes; escreveu o livro ?Uma vida nos cinemas?, publicado pela editora Movimento em 1999, e desde a década de 80 tem seus textos publicados em diversos jornais e outras publicações de cinema em Porto Alegre. E-mail: eron@dvdmagazine.com.br