O Olhar Ríspido

Kiko Goifman tem um olhar ríspido sobre as coisas. Sua proposta cinematográfica, Periscópio (2012), vai nesta direção

16/09/2016 21:50 Por Eron Duarte Fagundes
O Olhar Ríspido

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Kiko Goifman tem um olhar ríspido sobre as coisas. Sua nova proposta cinematográfica, Periscópio (2012), vai nesta direção: uma imagem cuspida diante, ou aos pés, do espectador. O argumento inicial pertenceu ao crítico de cinema Jean-Claude Bernardet. O escritor seguiu uma linha de embates rudes entre personagens que transitaria entre o teatro do irlandês Samuel Beckett e o cinema do italiano Marco Ferreri: uma inominada comilança em que, numa determinada cena as criaturas vividas por Bernardet e João Miguel entredevoram comidas e a si mesmos. Goifman, no roteiro final, introduziu a figura do periscópio, uma espécie de espião de ficção científica dentro do qual vemos uma cabra; o periscópio estava ausente do argumento inicial de Bernardet, seria como um fetiche da narrativa de Goifman.

Periscópio começa com longos movimentos de câmara em torno dum corpo envelhecido, creio que de Bernardet, mas onde não identificamos muito claramente que partes do corpo do homem é. Parece um pouco o início de Hiroshima, meu amor (1959), do francês Alain Resnais. Mas Goifman não é um ensaísta do cinema, como Resnais. Está ainda um pouco próximo do lado físico do documentário, embora, estimulado pela ideia-pingo de Bernardet, faça sua conflituada ficção.

Durante todo o processo de visão de Periscópio, nota o observador esta tensão entre uma encenação rigorosa e pensada tanto em seus planos (enquadramentos, movimentos de câmara, gestos dos atores) quanto em suas orientações de roteiro (certas ideias básicas) e uma meia-improvisação onde os quadros, os gestos e as falas parecem ir-se construindo à medida em que se encena. Periscópio se edifica e também se dilui nestas formas instáveis mas seguradas por certas nervuras onde se dá verdadeiramente o embate cinematográfico essencial: o texto que vem do escritório e a pulsação que se estimula no set.

Numa das noites em que o filme foi exibido em Porto Alegre, em 2015, um dos deleites da pós-projeção de Periscópio, na Sala Eduardo Hirtz da Casa de Cultura Mário Quintana, foi ouvir a sabedoria veterana de Jean-Claude Bernardet, agora travestido de ator na fase atual de sua projeção cinematográfica. Suas perplexidades de pensador do cinema são confrontadas pelo olhar ríspido de Goifman, tanto diante das câmaras quanto ao falar de seu filme para a plateia que ficou depois para escutar o diretor e o ator-argumentista-ensaísta.

Um dos polos desta narrativa multifacetada, às vezes esfarelada, é a tensão que se dá entre duas presenças cênicas, a de Jean-Claude e a de João Miguel. Como ficou claro nas declarações de Bernardet, havia uma disputa no set. Mesmo que Kiko, contraditoriamente, a rejeitasse como rancor posterior. Numa determinada cena, muito inspirada, João Miguel, uma cara brasileira típica de interior, debocha do jeito de falar de Jean-Claude, imitando-o com extrema perfeição. Mais adiante, Jean-Claude, o intelectual de origem europeia que imergiu na cultura brasileira há anos, devolve o troco, imitando o jeitão brasileiro de João Miguel. Um dueto de primeira.

 

(Eron Duarte Fagundes – eron@dvdmagazine.com.br)

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Sobre o Colunista:

Eron Duarte Fagundes

Eron Duarte Fagundes

Eron Duarte Fagundes é natural de Caxias do Sul, no Rio Grande do Sul, onde nasceu em 1955; mora em Porto Alegre; curte muito cinema e literatura, entre outras artes; escreveu o livro “Uma vida nos cinemas”, publicado pela editora Movimento em 1999, e desde a década de 80 tem seus textos publicados em diversos jornais e outras publicações de cinema em Porto Alegre. E-mail: eron@dvdmagazine.com.br

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