O Rigor Infernal

Sarabanda (Saraband; 2003), as derradeiras perturbações audiovisuais do cineasta sueco Ingmar Bergman, não teve exibições nos cinemas brasileiros

08/10/2016 23:04 Por Eron Duarte Fagundes
O Rigor Infernal

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Sarabanda (Saraband; 2003), as derradeiras perturbações audiovisuais do cineasta sueco Ingmar Bergman, não teve exibições nos cinemas brasileiros, como já não tivera sua realização anterior, o extraordinário O mundo de luz e sombra (1997), produzido para a televisão, como tudo o que Bergman fez depois de Fanny e Alexandre (1982), seu anunciado mas falso testamento cinematográfico; mas, ainda que lançado exclusivamente em dvd entre nós, o último Bergman seria destaque absoluto de qualquer temporada de cinema que se preze, ainda mais neste princípio de século XXI onde descobrir grandes filmes tem sido garimpagem difícil. Sarabanda foi vendido como a continuação de Cenas de um casamento (1974), mas esta propaganda é outra falsidade, pois se trata de outro filme, bastante diverso; Cenas de um casamento, provavelmente o trabalho mais popular do diretor nórdico, foi-se desdobrando ao longo do tempo, em Da vida de marionetes (1980) Bergman tomou duas personagens de fundo do filme de 1974, trouxe para um enforcado primeiro plano de rostos e armou outra angustiada reflexão sobre o casal contemporâneo. Em Sarabanda Bergman utiliza o mesmo casal que se destroça ao longo de Cenas de um casamento, Johann e Marianne; o mote estrutural de Sarabanda é a visita que Marianne decide fazer a Johann, isolado com seus livros em sua casa de interior: é Marianne quem apresenta num prólogo e encerra num epílogo as histórias abissais que cruzam tensamente pelas impecáveis imagens bergmanianas ao longo de doze capítulos; ela fala para o espectador propondo um jogo distanciado e reflexivo de que não está isento um certo corte de sangue no fim da narrativa. Mas Sarabanda não vai tratar das possíveis relações entre Johann e Marianne ao se reverem trinta anos após o divórcio; há pinceladas do que sobrou do relacionamento, como a noite em que os dois velhos tiram suas camisolas, deitam juntos e dormem certamente sem sexo porém com a emoção dos tempos de paz do corpo. Mesmo assim, não é por aí que Sarabanda perfura seus assuntos: Marianne, que seria uma espécie de narradora no introito e no cabo, é igualmente uma testemunha das atormentadas situações familiares de Johann em sua velhice de oitenta e seis anos; o filme vai transitar não por Johann e Marianne, embora os atores Erland Josephson e Liv Ullmann sejam os pontos luminosos do holofote afetivo-cinematográfico de Bergman, mas pelo filho de Johann, Henrik, viúvo ressentido da recente morte da esposa, vivendo uma relação de ódio com seu frio pai; vai transitar também pela amorosa atmosfera entre o avô Johann e a neta Karin, filha de Henrik; vai observar com obscura paixão as situações à beira do incesto entre Karin e Henrik.

Quando escreveu o roteiro de Face a face (1976), um dos filmes da fase de ambiguidade artística de sua filmografia, Bergman falava de uma dor de dente que o fazia “escrever” os filmes que filmava. Era uma dor de dente espiritual: o incômodo estético que lhe permitia visitar o inferno e sair santificado pela arte em obras-primas como Persona (1966) e Gritos e sussurros (1973). Agora, em Sarabanda, esta dor de dente se converteu num cancro terrível e assustador, é algo sem volta, sem o abano com o sinal luminoso da última imagem de Gritos e sussurros; a incompreensão entre um pai e seu filho em Através de um espelho (1961) e as dilaceradas conversações entre uma mãe e sua filha em Sonata de outono (1978) topam em Sarabanda uma radicalização do ódio, simbolizado especialmente nesta cena: Johann está tranquilo em sua biblioteca, a câmara observa o livro que está lendo, o sofisticado filósofo dinamarquês Soren Kierkegaard, o filho Henrik entra, perturba este isolamento com um pedido de ajuda, Johann numa frieza nórdica impressionante define sua repulsa àquele ser envelhecido que está diante dele e que é fruto de seu espermatozóide. Poucas vezes um cineasta ousou ser tão cruel numa imagem cinematográfica. Pode-se dizer que Bergman está bem velho, que esta é uma amargura da velhice; mas a transcendência cinematográfica desta amargura tem uma potência que não nasce de um artista velho, mas eternamente jovem. Bergman utiliza as composições musicais de Bach, principalmente a sarabanda e certas divagações religiosas das notas do grande compositor (veja-se a seqüência belíssima dentro duma igreja que culmina com um feixe de luzes sobre o quadro tendo no centro a figura de Liv Ullmann seguido de uma aproximação da câmara a um vitral de santos), tudo de maneira magnificamente plástica; conduzida por hábeis planos fixos mais ou menos longos e lentos, iluminada pelos diálogos, pelos desempenhos, pela partitura, pelas luzes, a narrativa atinge uma profundidade tocante e irreprochável. Ver Sarabanda é um ato religioso: sentimo-nos ajoelhados como numa autêntica missa cinematográfica; de joelhos, percebemos que tanta beleza nos sufoca de êxtase.

Quando Bergman, na década de 80, anunciou sua aposentadoria em cinema, dizia-se que Fanny e Alexandre  era a suma de sua obra. Não poderia ser: um filme tão álacre e aberto poderia dar conta de todos os significados bergmanianos? Sarabanda está mais perto desta categoria de suma: nunca o inferno cinematográfico de Bergman foi tão rígido e inflexível. Cinquenta anos depois de O sétimo selo (1956), Bergman desiste de jogar xadrez com a morte: o jogo se dá entre os homens; dedicado à esposa falecida do cineasta, Sarabanda namora a morte, pois trata de velhos (os velhos Johann e Marianne, o velho filho Henrik viúvo, a fotografia da falecida Anna, mulher de Henrik, assim como sua carta final e as evocações que os vivos fazem desta morta), mas em momento algum a morte é enfrentada: são os homens que se enfrentam interminavelmente neste novo jogo de xadrez que é Sarabanda.

 

(Eron Duarte Fagundes – eron@dvdmagazine.com.br)

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Sobre o Colunista:

Eron Duarte Fagundes

Eron Duarte Fagundes

Eron Duarte Fagundes é natural de Caxias do Sul, no Rio Grande do Sul, onde nasceu em 1955; mora em Porto Alegre; curte muito cinema e literatura, entre outras artes; escreveu o livro “Uma vida nos cinemas”, publicado pela editora Movimento em 1999, e desde a década de 80 tem seus textos publicados em diversos jornais e outras publicações de cinema em Porto Alegre. E-mail: eron@dvdmagazine.com.br

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