A Vagabundagem de Filmar

Eron Fagundes explora o filme A Cidade Branca: "a rigorosa inventividade cinematográfica é tão profunda quanto objetiva"

22/04/2013 22:33 Por Eron Fagundes
A Vagabundagem de Filmar

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“Cidade de orgias, passeios e alegrias”, escreveu em algum lugar o transcendental poeta norte-americano Walt Whitman. Pode-se dizer que o espírito intelectual de Whitman — refinado à beira da loucura — perpassa A cidade branca (Dans la ville blanche; 1983), rodado em Lisboa pelo suíço Alain Tanner. Tanner voltaria a Portugal com Réquiem, um encontro com Fernando Pessoa (1998), onde ele evoca Pessoa, um discípulo altíssimo de Whitman. Mas entre os dois filmes o cinema de Tanner, ainda que conserve características essenciais, se altera e se adultera. Em A cidade branca a rigorosa inventividade cinematográfica é tão profunda quanto objetiva: nada escapa a seu senso do lugar fílmico das coisas, dos objetos, aí incluídos cenários, movimentos e palavras.

A personagem central de A cidade branca, vivida pelo alemão Bruno Ganz, é um mecânico naval e, de navio em navio, se caracteriza como um dos muitos deambulantes daqueles anos. Sua vadiagem determina o estilo de filmar de Tanner, livre e solto, assim como a vagabundagem das garotas de Messidor (1979) se incrustava na linguagem inconstante (mas cerebralmente construída) de que participavam. Na capital portuguesa Paul, o homem dos navios, topa na região ribeirinha onde se hospeda uma atendente do local, uma portuguesinha, com quem vem a ter uma relação amorosa; como ela não fala inglês e muito menos o suíço-alemão de Paul, Rosa, a empregada da hospedagem, se comunica com seu homem em francês; os entreveros amorosos dos dois são entremeados por caminhadas exaustivas pela cidade branca (a fotografia esbranquiçada do luso Acácio de Almeida permite esta identificação pessoal de Lisboa) e por cartas densas em suíço-alemão de Paul à esposa que ele deixou na Suíça. Um certo despojamento de filmar remete o cinema de Tanner aos esboços do cotidiano do cineasta japonês Yasujiro Ozu; a constante filmagem de roupas nos varais e o trem do final do filme aclaram estas referências de Ozu em Tanner. Misturando imagens “normais” de cinema com filmagens granuladas em Super-8 (inclusive o rosto da enigmática morena no trem em que Paul embarca na sequência final aparece “normalmente” e depois filmado em Super-8), Tanner utiliza o amadorístico com o rigor de quem, à maneira do francês Robert Bresson, quer captar na atualidade o frescor primitivo do cinematógrafo; na diegese da narrativa, o Super-8 é atribuído à personagem de Paul, que estaria filmando suas andanças, porém o que de fato há é uma fusão de linguagens por parte do autor, Alain Tanner.

A cidade branca parece relatar uma experiência de exceção que no fim conduz a criatura a seu caminho convencional: depois de suas vivências lisboetas à margem, toma o trem para casa no fim, pois perdeu o paradeiro do símbolo de sua marginalidade, a empregadinha portuguesa. É o que acontece também em Messidor: as garotas vivem ao longo do filme sua excepcionalidade, mas sua prisão final indica que as coisas um dia ou outro caem nas regras. Não importa. O cinema de Tanner, ao menos o daqueles anos, permanece à margem das referências habituais.

P.S.: Para os brasileiros e os apreciadores de futebol, há uma sequência de bar em que se está assistindo à fatídica partida de 1982 em que a seleção brasileira foi eliminada pela seleção italiana; num plano desta sequência Paul (Ganz) murmura que Zico joga bem, mas não esconde sua simpatia pelos zebrões italianos.

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Sobre o Colunista:

Eron Duarte Fagundes

Eron Duarte Fagundes

Eron Duarte Fagundes é natural de Caxias do Sul, no Rio Grande do Sul, onde nasceu em 1955; mora em Porto Alegre; curte muito cinema e literatura, entre outras artes; escreveu o livro “Uma vida nos cinemas”, publicado pela editora Movimento em 1999, e desde a década de 80 tem seus textos publicados em diversos jornais e outras publicações de cinema em Porto Alegre. E-mail: eron@dvdmagazine.com.br

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