Solucionando as Lies das Trevas
Blaise Pascal (1972), filme televisivo de Roberto Rossellini, comea na juventude da personagem no gesto final de sua filmografia
Por volta dos dezesseis anos de idade, o filósofo francês Blaise Pascal (1623-1662) descobriu, na biblioteca de seu pai, um complicado livro de matemática escrito por um dos luminares da época, Girard Desargues, e, mesmo com o aviso paterno de que se tratava de “lições das trevas” e que um adolescente como Blaise não entenderia, decidiu ler. Ali nasceu o matemático e pensador Pascal, que imediatamente escreveu, adolescente pois, seu Tratado sobre as seções cônicas, onde procurava solucionar as “lições das trevas” de seu antecessor Desargues. Um dos muitos ditos de Pascal ajusta o seguinte: “Toda a dignidade do homem está no pensamento.”
Roberto Rossellini, o grande cineasta italiano, ao rodar suas biografias pensadas sobre grandes filósofos para a televisão italiana no gesto final de sua filmografia, foi dar inevitavelmente em Pascal, donde resultou mais um magnífico afresco de ideias, tensões cerebrais e curvaturas históricas da passagem do homem pela terra. Blaise Pascal (1972), o referido filme televisivo de Rossellini (que se inclui naquela categoria a que se poderia chamar documentário de ideias, onde estão igualmente Sócrates, 1970, Santo Agostinho, 1972, e Cartesio, 1974), começa na juventude da personagem, justamente no momento em que, enquanto ajudava meio burocraticamente a seu pai no escritório, a obscuridade de Desargues emerge no cérebro de Pascal não para mergulhá-lo em idêntica obscuridade mas para solucionar estas trevas e dar-lhes luz e transparência. É mais ou menos o que faz o cinema tão simples quanto profundo, tão objetivo quanto espiritual de Rossellini ao mergulhar suas câmaras nos universos dos grandes e complexos pensadores ocidentais; aclarar as lições das trevas, eis o que sempre foi o gesto cinematográfico de Rossellini, desde o começo e permaneceu intocável até sua derradeira obra, O Messias (1976), que tratou com naturalidade duma figura vulgarizada e massificada como Jesus Cristo.
Rossellini incluiu em seu roteiro a descoberta de Desargues por Pascal, suas inquietações metafísicas, suas dúvidas avançadas, os aspectos obscurantistas da sociedade seiscentista que o cercava, o encontro pouco amistoso com um contemporâneo mais velho e famoso, René Descartes (1596-1650), que depois seria retratado por Rossellini em Cartesio. Mas o momento supremo da arte de Rossellini em Blaise Pascalá a longa, densa sequência final em que se dá a morte de Pascal; antes dela, ligada a ela, a decrepitude física precoce de Pascal, sua agonia marcada; o êxtase místico atingido por Rossellini nestas cenas o reelevam à categoria de o mais profundo dos criadores jamais produzidos pelo cinema e as expressões da agonia de Pascal são tão belas, agudas e perturbadoras quanto as da agonia da irmã doente em Gritos e sussurros (1972), do sueco Ingmar Bergman, feito também por aqueles anos.
Se em algum momento o cinema me alcançou instantes de um prazer perfeito, o “puro prazer” a que se refere o crítico gaúcho Hiron Goidanich nominando alguns filmes de seu deleite, é no cinema de Rossellini (e Blaise Pascal é este exemplar característico) que topo esta situação.
(Eron Duarte Fagundes – eron@dvdmagazine.com.br)
Sobre o Colunista:
Eron Duarte Fagundes
Eron Duarte Fagundes natural de Caxias do Sul, no Rio Grande do Sul, onde nasceu em 1955; mora em Porto Alegre; curte muito cinema e literatura, entre outras artes; escreveu o livro Uma vida nos cinemas, publicado pela editora Movimento em 1999, e desde a dcada de 80 tem seus textos publicados em diversos jornais e outras publicaes de cinema em Porto Alegre. E-mail: eron@dvdmagazine.com.br