Licoes no Abismo
O cineasta brasileiro Ernane Alves tem o instinto de filmar
O cineasta brasileiro Ernane Alves tem o instinto de filmar. E dota-se, em sua persona cinematográfica, da própria posse da imagem, dos meios visuais que concretizam seus filmes. Como se dá esta apropriação por Ernane do universo fílmico que ele vai criando? Além de diretor e roteirista de suas narrativas de ficção (desde Confissões de Olavo, 2007, onde ele interpretava e filmava um garoto de programa bissexual), Ernane é o ator central de sua história; à maneira de Woody Allen, Jacques Tati ou Orson Welles, Ernane é intérprete e diretor, dirige a si mesmo em cena e interpreta para a câmara que ele próprio determina como manejar.
Em pré-lançamento no dia 26 de abril de 2022, no Cine Santa Tereza, em Belo Horizonte, capital mineira, Clube das ilusões (2010-2021), um filme que ele rodou há onze anos e só agora retoma o projeto para desarquivar as imagens e finalizar o processo de produção e distribuição (como Welles, o instinto e as inquietações de Ernane deixam pelo caminho obras inconclusas que uma hora podem vir à luz), é mais um exemplar de seu cinema feito de um naturalismo próprio, o cotidiano filmado entre a ingenuidade, a natureza simples das condutas e os aspectos documentais de algumas vidas, enfeixando-se numa proposta que chega lá pelas tantas a alguma inesperada complexidade. Ernane vive diante das câmaras a personagem dum epiléptico (Fernando, ou Nando) que, pelos problemas de saúde, não consegue manter seus empregos; ele namora Isabella (a Bela), e há ainda um terceiro polo de personagem, o amigo Caio. São três sonhadores, a Bela mais que todos: ela sonha com deixar a província e fazer a vida em São Paulo, a metrópole por excelência, o que permite ao espectador evocar Marcelo zona sul (1970), de Xavier de Oliveira, onde a personagem adolescente de Stepan Nercessian era um carioca que sonhava com fazer-se na capital paulista. Mas o sonho da criatura de Ernane tem um entrave: Nando, numa consulta médica, é desenganado; pode morrer a qualquer momento, não voltando de um de seus ataques epilépticos.
Antes do desfecho, algumas cenas que fundamentam. A imagem final das três personagens deitadas no chão, de mãos dadas, induz a uma questão: seria o bissexualismo um modo de vida ainda que de natureza platônica no polo homossexual? No entanto, as lições no abismo que atravessam o espírito de Nando, um homem que espera a morte, trazem Tânatos para dentro de Eros. Clube das ilusões é uma bela viagem ao interior sentimental de indivíduos que fogem ao padrão social, autistas, epilépticos.
(Eron Duarte Fagundes – eron@dvdmagazine.com.br)
Sobre o Colunista:
Eron Duarte Fagundes
Eron Duarte Fagundes é natural de Caxias do Sul, no Rio Grande do Sul, onde nasceu em 1955; mora em Porto Alegre; curte muito cinema e literatura, entre outras artes; escreveu o livro Uma vida nos cinemas, publicado pela editora Movimento em 1999, e desde a década de 80 tem seus textos publicados em diversos jornais e outras publicações de cinema em Porto Alegre. E-mail: eron@dvdmagazine.com.br